domingo, 11 de junho de 2017

A Economia do Crime

Refletindo acerca dos Estudos de Ricardo Lagos e sua Aplicação na Criminologia: Leitura em Prol da Gestão da Defesa Social

Introdução

O presente trabalho, objetivamente, é uma leitura comentada do "paper" de Ricardo Lagos --A Economia do Crime-- no qual elabora acerca de conceitos previamente desenvolvidos por ele, Burdett e Wright no artigo--Crime, Desigualdade e Desemprego. Eles são parte de uma linhagem de pesquisadores iniciada por Gary Becker, Prêmio Nobel de Ciência Econômica de 1992, autor de pesquisas pioneiras em análise econômica do crime

Ricardo Lagos começa por apontar que o fenômeno da criminalidade é uma questão política de tamanha "sensibilidade" nos dias atuais, que os operadores políticos passaram a ter de arcar, em suas carreiras, com os ônus decorrentes da efetividade com que enfrentam esse grave fenômeno social. O atributo de haver conseguido controlar a criminalidade é hoje algo bastante raro no "portfólio político" dos executivos do nosso tempo. Exceção à regra, Rudolph Giuliani, enquanto prefeito da cidade de Nova Iorque (1993-2002), logrou tornar-se uma celebridade internacional em função do sucesso de seu famoso programa de segurança pública, o "Tolerância Zero".

A maioria absoluta das vezes, o tema do controle da criminalidade se apresenta mais renitente do que ameno, em termos da efetividade das políticas públicas adotadas para a gestão da defesa social. Em grandes cidades brasileiras, caso do Rio de Janeiro e São Paulo, a temática da segurança vem adquirindo uma posição tão central entre as questões públicas, que já chega mesmo a condicionar as intenções de voto. Especificamente no Rio de Janeiro, o programa das "Delegacias Legais", exitosamente implantado pelo governador Anthony Garotinho, recentemente foi destaque no relatório de Nigel Rodley, representante da Comissão de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) e que visitou o Rio de Janeiro em missão de "fact finding" (busca de fatos, ou exploratória) sobre a tortura no Brasil.

Lagos cita o exemplo do Primeiro-Ministro da Inglaterra, Tony Blair, atualmente empenhado na difícil tarefa de tentar reverter aumentos significativos dos índices de criminalidade, isso depois de vários anos em que o fenômeno apontava tendência decrescente naquele país. O número de assassinatos em Londres subiu 20% em 2000. Tal situação tem paralelo com a brasileira, com o Governo Federal tentando criar rapidamente uma superestrutura central de gestão da segurança pública (Secretaria, Plano e Fundo Nacional de Segurança Pública), no intuito de contribuir para a contenção do clima de violência e delinqüência reinante do país, fenômeno hoje mais que visível nos entes federativos brasileiros. A esse respeito, é emblemático o episódio de seqüestro de um transporte coletivo no Rio de Janeiro, no ano 2000 (o "ônibus 174"). Tal ocorrência policial, amplamente coberta pela mídia televisiva brasileira, "ao vivo", durante várias horas, plasmou em perplexidade o aprofundamento da sensação de insegurança já instalada no país, estabelecendo o anti-clima para o lançamento do Plano Nacional de Segurança Pública (PNSP) em junho de 2000.

É sempre difícil contextualizar a situação da criminalidade brasileira com a de grandes países desenvolvidos, caso dos EUA, Inglaterra ou França. É preciso levar em conta que, somadas, a população de Londres e a de Paris eqüivalem à da cidade de São Paulo, ou seja, perto de 10 milhões de habitantes. O total de homicídios registrados nas duas capitais européias, porém, não passou de 270 ocorrências no ano 2000, enquanto só em São Paulo ocorreram 5300 ocorrências desse tipo no mesmo período. No Rio de janeiro, outros tantos 2600 homicídios aconteceram em 2000.

Ainda que consideradas as diferenças entre o Brasil e outros países, também é aplicável a ele a tendência que Lagos identifica no discurso global de "endurecer com a criminalidade e tornar a polícia mais efetiva no seu controle". Esse paralelo fica materializado, entre outras iniciativas recentes de "endurecimento", nas propostas de mudanças na legislação no que concerne os chamados "crimes hediondos" e os controvertidos clamores pró e contra a diminuição da idade de responsabilidade penal. No Brasil, no intuito específico de aumentar a efetividade policial foram feitos investimentos de mais de R$300 milhões em 2000, em nome do PNSP e do Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP). O Governo Federal vem buscando, entre outros objetivos, melhorar os equipamentos e adensar as atividades de treinamento das 54 polícias estaduais brasileiras.

Retórica e discursos a parte, Lagos questiona se "não é hora de repensar os métodos tradicionais de lidar com o crime", aduzindo que "uma quantidade cada vez maior de pesquisas sobre a economia do crime parece indicar que sim". E é nesse sentido que fazemos uma "leitura brasileira" do que seja a economia do crime e dos potenciais benefícios em melhor compreendê-la.
O crime piora cada vez mais...

Ao apontar que "índices crescentes de criminalidade criam um clima alarmante para o público, ao mesmo tempo que desencadeiam um clamor pelo endurecimento em relação ao tema", a perspectiva balizada por Lagos também é aplicável ao Brasil. Isso é bastante pertinente à realidade brasileira atual, ainda que só muito recentemente, no final de 2001, tenham sido finalmente produzidas, pela Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP) do Ministério da Justiça (MJ), as primeiras estatísticas criminais oficiais nacionais. Foi noticiado, inclusive, ter havido uma certa reserva, da parte do MJ, em tornar públicos os números extremamente altos que correspondem à criminalidade brasileira. Evidente que a gravidade do fenômeno já era percebida, ainda que sem os índices oficiais, já que mesmo enquanto "objeto difuso" a criminalidade é sempre "sentida", porquanto tema intensamente visto, falado, ouvido e noticiado.

Lagos questiona se o encaminhamento do problema da criminalidade realmente deva passar, necessariamente e apenas pela solução clássica de "responder ao crescimento dos índices despejando dinheiro em atividades que possibilitem prender e encarcerar a maior quantidade possível de delinqüentes, condenando-os a penas cada vez mais rigorosas".

Seguramente o pesquisador da "London School of Economics" refere visão e práticas modernas da prevenção, ao invés da ortodoxia de apenas reagir ao fenômeno da criminalidade. Em verdade, argumenta Lagos, "a tendência de longo prazo na maioria dos países é de taxas estáveis de crescimento da criminalidade", isso considerando, em conjunto, flutuações sazonais dos índices de criminalidade no transcurso de tempo de grandes séries históricas.

Tudo leva a crer que o Brasil deva estar no primeiro quartil de escalonamentos decrescentes de índices internacionais de criminalidade, isso porque os índices pioneiramente divulgados pelo Ministério da Justiça (ao final de 2001, números referentes a 2000) apontam taxas nacionais de homicídios situadas em faixa superior a duas dezenas de homicídios por 100 mil habitantes. Dados recentes da ONU (1997) mostram que poucos países apresentavam taxas de homicídios tão altas como as do Brasil (23,52), à exceção de nações como a África do Sul (60,56), Colômbia (57,94) e Albânia (46,39). Daí porque, talvez não seja aplicável a suposição de estabilidade histórica à criminalidade brasileira. Contudo, quiçá possamos considerar aplicável, também no Brasil, a observação do cientista da Universidade Nova Iorque de que "o quadro atual de tendências leva a um questionamento da eficácia dos métodos tradicionais em lidar com o crime".

O professor e pesquisador em Econometria remonta então a conceitos clássicos da criminologia e respectivos paradigmas da moderna análise criminal. Refere-se ele, subsidiariamente, porquanto em trabalho específico da área econômica, que a criminalidade estaria condicionada por uma vasta gama de fatores (variáveis independentes) contribuintes para o entendimento do comportamento criminal dos indivíduos (variável dependente). Cita, especificamente, entre tais fatores, faixa etária, gênero, escolaridade, características do núcleo familiar e pertinência dos indivíduos a determinados estratos sociais e econômicos.

Central na abordagem metodológica de Lagos, pondera que a despeito dos mecanismos envolvendo as variáveis clássicas citadas, "desde as primeiras análises econômicas do crime, realizadas em 1968 por Gary Becker, os economistas vêm ficando cada vez mais convencidos de que incentivos de ordem econômica podem ser fatores determinantes no envolvimento dos indivíduos com o crime (ao menos no que diz respeito aos delitos contra a propriedade)". Assim, Ricardo Lagos passa a analisar a criminalidade, na mesma abordagem de alguns outros pesquisadores da área econômica, com o instrumental próprio do "ofício" dos cientistas econômicos que seguem a tradição econométrica. Isso certamente faz de suas formulações particularmente interessantes para a moderna gestão da segurança pública, sob a ótica de uma abordagem eminentemente centrada na prevenção, província da doutrina da "defesa social".

Lagos, na tradição de pesquisa de Gary Becker, traz a baila o conceito de "custo benefício do crime", fazendo-o central em suas formulações. Cita, especificamente, que "o que existe em comum numa grande quantidade de teorias e pesquisas é considerar que as ações ilícitas dos criminosos de carreira (contumazes) subentenda uma avaliação individual, da parte deles, da relação custo benefício em delinqüir". Assim é que o entendimento da maneira como os criminosos reagem a incentivos econômicos poderá permitir o estabelecimento de "instrumentos novos e úteis" para a formulação de políticas de defesa social, tudo com o objetivo específico de controle do fenômeno da criminalidade.

A equação básica

Ricardo Lagos observa que "de um ponto de vista individual, o elemento primordial do processo decisório de delinqüir é estimar o chamado índice de retorno". Através dessa estimativa, seriam considerados os possíveis resultados do cometimento de um ilícito e deliberado sobre seu cometimento ou não. Segundo a teoria em exame, o cometimento da ação criminosa, na avaliação do potencial delinqüente, dependeria de três fatores: "(i) o tamanho da "recompensa" proporcionada pelo cometimento do crime (na suposição de que a ação criminosa fosse bem sucedida); (ii) a probabilidade de ser preso e condenado e (iii) o rigor da pena a cumprir (na suposição de que a ação criminosa malogre)".

O "custo de oportunidade" do engajamento em atividades criminais seria estimado através do índice de retorno em relação ao cometimento do ilícito. Isso dependeria do salário pago em atividade lícita em que o indivíduo pudesse encontrar emprego; da disponibilidade de tal emprego (as chances de encontrá-lo estando o indivíduo desempregado ou, em estando empregado, as chances de manter tal emprego); garantia de renda durante períodos de desemprego e oportunidades futuras de emprego (expectativa de renda e probabilidade de manutenção da renda atual)".

Num raciocínio de entendimento bastante óbvio, até mesmo pelo senso comum, Lagos postula que isolando a gratificação potencial proporcionada pelo cometimento do crime (de correlação positiva ou relação direta com o índice de criminalidade), seja de se esperar uma correlação negativa (ou de relação inversa) entre os outros fatores e o índice ou taxa de criminalidade. Ou seja, (i) quanto maior o tamanho da "recompensa potencial" em delinqüir, maiores serão os índices de criminalidade, enquanto que, ao contrário, (ii) quanto maiores as probabilidades de prisão e de apenamento rigoroso, menores serão os índices de criminalidade.

Referindo-se ao potencial de utilização desse tipo de modelagem teórica, tipicamente econômica em sua especificidade para análises de padrões de comportamento humano, Ricardo aponta que "se os criminosos contumazes respondem ao índice relativo de retorno do crime de conformidade com as variáveis citadas, é possível antever que mudanças e tendências nos índices de criminalidade (variável dependente) possam ser associadas a mudanças e tendências nos seus fatores determinantes (variáveis independentes)". Lagos parece então sugerir que o conhecimento do índice relativo de retorno do crime pode indicar à gestão da segurança pública novas possibilidades de controle do fenômeno. A questão, e é ele próprio que levanta, "é de quanto de evidência existe para que fiquem estabelecidas as correlações apontadas".

A situação dos Estados Unidos da América (EUA) quanto à aplicabilidade dos conceitos da Economia do Crime: fartura de dados e informações.
A "tecnologia do conhecimento" tem grande aplicação na área de gestão da justiça criminal norte-americana. Representam, hoje, paradigmas internacionais de quantificação e qualificação de expressões nacionais da violência e da criminalidade, os vários instrumentos concebidos nos EUA para orientar a gestão da segurança pública e da defesa social. Entre eles, sobressaem o "Uniform Crime Report Systema" (UCRS), o "National Incident Based Report System" (NIBRS), a National Crime Victimization Survey" (NCVS) e o "National Crime Information Center" (NCIC).

A boa qualidade de dados e informações produzidas sobre a criminalidade nos EUA permite visões e análises bastante acuradas do fenômeno, mormente através pesquisas instrumentadas por metodologias quantitativas, certamente o caso da abordagem "econométrica" de cientistas da linhagem teórica de Gary Becker, incluindo Ricardo Lagos e colaboradores (K.Burdett e R.Wright).

Segundo Lagos, "as taxas de criminalidade dos EUA diminuíram significativamente nos últimos 20 anos: o índice de 5,95 por 100 habitantes, em 1980, passou para 5,09 em 1996. Ainda segundo o pesquisador, "a redução mais nítida aconteceu no índice de crimes contra a propriedade, caindo de 5,60 por 100 habitantes em 1980 para 4,65 por 100 habitantes em 1996 (queda de 17%)".

Ricardo Lagos cita que "pesquisas recentes de Imrohoroglu e colaboradores investigaram detida e precisamente as razões do declínio dos crimes contra a propriedade nos EUA no período 1980-1996". De fato eles o fizeram, e com tanta propriedade, que a modelagem metodológica proposta pode acomodar com precisão não apenas os comportamentos dos indíces de criminalidade contra a propriedade na série histórica considerada (1980-1996), mas também nos últimos 25 anos. Imrohoroglu e colaboradores identificaram mudanças significativas nas variáveis independentes atuando sobre expressões do fenômeno da criminalidade. Conforme apontado por Lagos, são elas: (i) a fração do PIB aplicada em gastos com a polícia, (ii) a taxa de esclarecimentos de crimes contra a propriedade e (iii) os salários reais.

O autor aponta as seguintes mudanças substanciais na relação variáveis independentes versus índice de criminalidade (1980-1996): (i) a fração do PIB aplicada em gastos com a polícia saiu de 0.6% para 0.7%, implicando numa maior efetividade policial, atributo traduzido no incremento da taxa de esclarecimentos de crimes, aumentada de 16.8% para 18.5% (implicando em aumentarem as chances dos criminosos serem presos) (ii) o salário mínimo real foi aumentado de $16,770 para $18,670 (valores indexados para 1990), implicando num aumento dos custos de oportunidade da delinqüência. Ou seja, passou a ser "mais arriscado delinqüir", ao mesmo tempo que passou a "valer mais a pena trabalhar".
Some-se a isso o fato de que, com a mudança da estrutura demográfica dos EUA, houve uma diminuição relativa do tamanho do estrato jovem da população, o que contribuiu para uma diminuição do próprio grupo de risco para autoria de delitos, inclusive aqueles contra a propriedade. Lagos elabora sobre esse tema, ao afirmar:

"os fatores demográficos são muito importantes, já que uma porção significativa dos crimes cometidos nos EUA são per perpetrados por indivíduos do grupo populacional de 18 ou menos anos de idade. Enquanto em 1980 o estrato populacional de 15 a 25 anos representava 20,5% da população, tal quociente caiu para 15,1% em relação à população total estimada para 1996. Considerando que indivíduos jovens possuem uma propensão maior de engajar em atividades criminais, a redução do seu percentual na população total, fruto de uma transição do perfil demográfico, certamente terá contribuído para um declínio nos índices nacionais de criminalidade."

A certeza da prisão e do rigor das penas fazem uma diferença...
O pesquisador da Universidade de Nova Iorque observa ainda como pesquisas recentes dão conta do fato de que certos grupos demográficos respondem, de modo específico, a estímulos para a delinqüência. Mais uma vez, a prevalência de criminosos com origem nos estratos populacionais mais jovens é de particular interesse.

Lagos cita ainda que, a despeito do índice geral de criminalidade nos EUA ter caído nos últimos 20 anos, o concurso de autores jovens aumentou significativamente nesse mesmo período. Entre 1978 e 1993, por exemplo, houve um incremento de 177% nas prisões de indivíduos jovens pelo cometimento de homicídios, enquanto a participação dos adultos caiu em 7% no mesmo período. De maneira análoga, a taxa de prisões de jovens por crimes violentos cresceu 79%, enquanto o incremento no grupo dos adultos foi de apenas 31%. Ricardo indaga acerca das possíveis razões para essa tendência...

Steven Levitt, segundo Lagos, examinou a possibilidade de que a diferença de padrão no cometimento de crimes, por jovens e adultos, pudesse ser atribuída a uma "resposta racional" às diferentes possibilidades em termos de certeza e rigor de penas aplicadas diferenciadamente a delinqüentes dos dois grupos.

De acordo com as medidas tomadas acerca da certeza da condenação e do rigor das penas aplicadas, Levitt observou que em 1978 o rigor das penas aplicadas aos jovens equivalia, aproximadamente, ao observado na aplicação de penas a indivíduos adultos. Elas passaram a ter apenas metade desse rigor a partir de 1993. A análise sugere que 60% do diferencial dos índices dos dois grupos pode ser atribuído à diferença no rigor do apenamento aplicado a jovens e adultos. Isso parece apontar que os jovens efetivamente levem em conta diferenças no grau de certeza e rigor da aplicação das penas ao cogitar delinqüir.

Lagos aponta que uma outra análise parece apoiar o argumento anterior: existe uma nítida diferença no envolvimento de jovens com a delinqüência quanto à jurisdição em que eles serão julgados (tribunais da justiça juvenil ou da justiça comum). Quando os crimes violentos cometidos por jovens são julgados em tribunais comuns, observa-se duas tendências bastante distintas: (i) uma queda da ordem de 4% nas taxas de participação de jovens nesses crimes, isso nos estados em que a justiça juvenil é leniente em relação à justiça comum e (ii) um crescimento da ordem de 23%, nas mesmas taxas, nos estados onde a justiça juvenil é mais severa que a comum.

Os salários também são importantes...

De acordo com pesquisas desenvolvidas por Jeffrey Grogger, os salários pagos à população jovem mostram uma correlação negativa com os índices de crimes cometidos por indivíduos desse estrato demográfico. Grogger documentou a relação entre níveis de salário e índices de criminalidade, concluindo que o comportamento criminal entre jovens é altamente dependente de seus potenciais ganhos salariais em atividades legítimas. Um incremento de 10% nos salários produz uma redução de 6 a 9% da criminalidade entre jovens. A situação concreta, no período do meio da década de 70 aos dias atuais, aponta uma queda aproximada de 20% no salário real da população jovem, o que, na análise de Grogger, deve ter produzido um acréscimo de 12 a 18% da participação do estrato jovem nos índices de criminalidade.

Vale notar que as conclusões dos estudos de Grogger também abrangem a questão da participação diferenciada de brancos e negros na criminalidade norte-americana. Ricardo Lagos aponta a já bem conhecida situação de que indivíduos de características negroides, nos EUA, percebam menores salários que caucasianos (brancos), mesmo quando todas as outras características individuais são equivalentes (idade, educação, experiência e tipo de trabalho anterior). Também é do professor de economia da Universidade de Nova Iorque a assertiva de que os registros policiais norte-americanos apontam uma participação relativamente maior de indivíduos com características raciais afro-americanas na atividade criminal. Os estudos e análises de Grogger parecem sugerir que isso também esteja vinculado ao fenômeno do mercado de trabalho. À disparidade de renda entre negros e brancos corresponderia um terço da participação diferenciada desses grupos em atividades criminais. Lagos cita também pesquisas recentemente realizadas pela "London School of Economics" apontando forte evidência da existência de uma correlação negativa entre salários e criminalidade (quanto maior o primeiro, menor o segundo, e vice-versa).

As Lições para os formuladores de políticas públicas...

É voz corrente, no Brasil atual, ainda que sob a égide do senso comum, que o grau de intensidade da desigualdade social e da prevalência do crime sejam categorias positivamente correlacionadas (aumentam e diminuem em ordem direta). Lagos e suas várias formulações ao longo do artigo "Economics of Crime", só vem a corroborar, com robustos argumentos, prenhes da confiabilidade resultante do rigor da pesquisa acadêmica, a idéia de que "existe uma clara correlação entre certos "incentivos" e o crime". É ele quem observa que tais "incentivos" devam ser entendidos de maneira bastante ampla, a começar da certeza da sanção e da severidade da pena, incluindo outros fatores que explicitamente impliquem em custos e benefícios diferenciados quanto ao cometimento de crimes.

Todas as fortes evidências apresentadas no artigo em exame, correlações inclusive, aponta o autor Ricardo Lagos, "deverão servir para que ao menos alguns analistas as levem em conta quando da formulação de políticas de controle da criminalidade". E prossegue, "a constatação da existência de uma relação direta, freqüentemente encontrada entre as medidas de desigualdade de renda e de taxas de criminalidade contra a propriedade, por exemplo, já levou alguns economistas a sugerirem taxação redistributiva como política de combate à criminalidade". Lagos também refere pesquisas recentemente realizadas por ele próprio, e por outros economistas, nas quais recomendam, em situações específicas, a concessão de "benefícios mais generosos a título de seguro desemprego, porquanto servirão como redutores dos índices de criminalidade". Observa, entretanto, a necessidade de manutenção da certeza da ação da justiça e da severidade de suas penas, já que, em caso contrário, aumentos no seguro desemprego podem ter "efeitos ainda mais perversos na questão da criminalidade".

Como "nota final", epílogo do seu interessantíssimo trabalho, o celebrado economista pontifica:

"formuladores de política públicas tendem a buscar encaminhar problemas econômicos com o instrumental da economia, e os do crime com os instrumental da criminologia. Assim é que as questões do desemprego são tratadas com propostas de benefícios mais generosos para os desempregados, enquanto as da criminalidade crescente clamam por mais polícia. Mas o fato de que agora saibamos como criminosos habituais reagem a certos incentivos econômicos e de outras espécies, abre a possibilidade de um novo papel para as políticas anti-criminais de natureza econômica. Quando o índice de criminalidade estiver muito alto, o "menu" de políticas públicas para remediar a situação deve incluir tanto medidas de natureza econômica quanto de repressão criminal. E a maneira "ótima" de fazer face a tal situação, quase que certamente, irá incluir um "mix" dos dois tipos de medidas.

Artigo no Alerta Total – www.alertatotal.net
Por George Felipe Dantas

sábado, 15 de abril de 2017

Uma sociedade de criminosos

Recentemente, uma amiga queixou-se sobre um surto de arrombamentos que estavam ocorrendo na vizinhança de sua recém-comprada casa.  Uma casa mais à frente da dela havia sido arrombada há algumas semanas e, não muito tempo depois, foi a vez da casa ao lado.  Nesta, os ladrões levaram uma enorme televisão de plasma e um laptop, sendo que eles aparentemente saíram andando da casa com a mercadoria à plena luz do dia.
Minha amiga estava evidentemente indignada com toda essa roubalheira — exatamente como deveria — e parecia ter dificuldades para entender como os ladrões tiveram a petulância de arrombar uma casa e levar aquilo que não lhes pertencia.  “Como ousam?!”, disse ela.  “O que os fazem pensar que têm o direito de fazer isso?”
É uma pergunta justa.  O que os fazem pensar que têm o direito de fazer isso?  Bom, talvez eles saibam que não têm o direito de fazer isso, mas o fazem assim mesmo porque seu desejo de obter o imerecido (aquilo que não foi ganho pelo trabalho) é maior do que seu respeito pelos direitos de propriedade de terceiros.  Talvez os ladrões racionalizaram seu crime com base em alguma suposta necessidade; necessidade essa produzida — sem dúvida — pelo fato de terem sido “marginalizados” pela sociedade.
Sobre as atitudes desses ladrões em particular, podemos apenas especular.  Porém, em um sentido mais amplo, podemos perguntar: Por que será que um criminoso sente-se confortável tomando uma propriedade que ele não adquiriu por merecimento próprio?
Após ouvir o relato de minha amiga, concordei plenamente que os ladrões que haviam pilhado seus vizinhos (tinha de ser mais de um para poder carregar o grande aparelho de TV) não tinham nenhum direito de obter essa propriedade que não lhes pertencia, e que ela tinha toda razão de estar brava.  Entretanto, por estar sempre em alerta à espera de uma oportunidade para disseminar o pensamento libertário, também aproveitei para informá-la que a conduta dos ladrões em nada diferia fundamentalmente da conduta da maioria das pessoas da sociedade, as quais rotineiramente defendem ou aceitam o roubo de propriedade que não é delas.
Ah, mas é claro que não!  É claro que somente um salafrário dos mais torpes poderia achar que tem o direito de roubar a propriedade dos outros!  Nenhum cidadão “cumpridor das leis” iria aceitar tal coisa!  Iria?
Bem, vejamos: suponha que um indivíduo tenha a grande perspicácia de perceber que algumas pessoas não têm tanto dinheiro quanto as outras, e que seria bom se elas tivessem mais dinheiro do que têm atualmente.  Para remediar esse problema, o iluminado propõe que um grupo de generosos benfeitores crie uma agência cuja função seja tomar forçosamente o dinheiro de terceiros sem a permissão destes (ou seja, roubá-los), e dar uma parte do roubo para aquelas pessoas que consideram “necessitadas”.  O grupo, então, utilizaria o que sobrou do roubo para:
1) deturpar a moral dos recebedores, fazendo-os crer que têm um direito adquirido sobre esse dinheiro roubado;
2) financiar propagandas que mostram a todos o ótimo trabalho que a agência está fazendo; e
3) gradualmente construir um pequeno e lucrativo império para a equipe de funcionários no comando da agência, que têm o sucesso dos grandes bandidos — ganhando muito mais do que ganhariam em outros empregos, ao mesmo tempo em que são enaltecidos pelo seu “serviço público”.
As pessoas ficam indignadas com esse arranjo?  Elas chamam a polícia para denunciar essa extorsão?  Elas formam comitivas para ir aos gabinetes de seus representantes eleitos e exigir que essa abominável agência seja abolida?  Não, elas não fazem nada disso.  Na realidade, ocorre exatamente o oposto: as pessoas se aglomeram e se atropelam para dizer o quanto apóiam esse sistema, tomando o máximo de cuidado para não deixar escapar nenhuma crítica a qualquer excesso que porventura tal sistema possa cometer, como que para deixar claro que elas realmente se “importam” com “os pobres”.
Os exemplos da abundância desse tipo de criminalidade e do abundante apoio aos — ou pelo menos condescendência para com — programas que praticam tais crimes são extremamente extensos.  O fato é que, nesse ambiente, não é de se surpreender que os ladrões tenham poucos escrúpulos e não hesitem em tomar propriedade que não lhes pertence.  A razão para esse sentimento é provavelmente muito similar à razão por que a vasta maioria das pessoas em nossa sociedade acha que tem direito sobre a propriedade dos outros:vivemos em uma sociedade de criminosos.
Mas como assim?  A maioria das pessoas não obedece às leis?  Elas não pagam seus impostos e dirigem apenas quando têm carteira de motorista, como qualquer bom cidadão “cumpridor da lei”?  Elas não obedecem às regulamentações trabalhistas, às regulamentações ambientais, aos regulamentos tributários, e a todas as outras coisas que seus representantes eleitos mandam?
Bom, sim — na medida em que é possível cumprir com esse enorme e frequentemente vago ou contraditório emaranhado de regras, a maioria das pessoas o faz.  Mas isso não é obediência à lei; isso é obediência àlegislação.  Trata-se meramente de obedecer aos decretos dos detentores do poder.
Com efeito, as únicas regras de conduta que podem adequadamente ser chamadas de “leis” são as regras das leis naturais — aquelas regras de conduta objetivas que são tidas como moralmente adequadas em decorrência da natureza do homem.[1]  Essas regras consistem essencialmente no princípio da não agressão e nas regras da apropriação original e da livre troca de propriedade, que são a base da teoria libertária da justiça.  Em sua discussão sobre a lei natural, o grande teórico jurídico Lysander Spooner apresenta as condições desta lei:
As condições são simplesmente essas: primeiro, que cada homem deve fazer, em relação a todos os outros, tudo o que a justiça requer que ele faça; como, por exemplo, que ele deve pagar suas dívidas, que ele deve devolver ao dono a propriedade que foi roubada deste ou que lhe foi tomada emprestada, e que ele deve reparar qualquer dano que porventura possa ter causado para a pessoa ou propriedade de outro.  A segunda condição é que cada homem deve se abster de fazer ao outro qualquer coisa que a justiça o proíba de fazer; como, por exemplo, que ele deve se abster de praticar furto, roubo, incêndio criminoso, assassinato ou qualquer outro crime contra a pessoa ou a propriedade de outro.[2]
Portanto, como as pessoas se saem quando avaliadas em sua conduta em relação a esta lei — em relação à lei?  Nada bem.  Aliás, quando se avalia sob essa perspectiva, a imensa maioria das pessoas aprova atos criminosos.
As pessoas frequentemente se surpreendem com a mentalidade dos “criminosos comuns” (ou seja, criminosos da variedade genuinamente reconhecida como criminosa) porque elas acham que a atitude desses criminosos — de achar que podem adquirir bens imerecidos, que não foram ganhos por meio do trabalho — é um defeito relativamente escasso.  Mas não é.  Com efeito, a vasta maioria dos membros do público se sente perfeitamente no direito de arrebatar a propriedade de terceiros.  Eles exigem que as propriedades de terceiros sejam confiscadas por meio do sistema tributário e de outras “políticas públicas”, ou que se interfira forçosamente nelas por meio de “regulamentações” rotineiras.
Mesmo que eles não sejam os beneficiários líquidos nesse sistema, mesmo que eles entreguem em impostos muito mais do que jamais receberão desse esquema extorsivo, é provável que eles ainda assim apóiem várias “políticas públicas” que, na prática, equivalem a um roubo ou a uma violação da pessoa e da propriedade de terceiros.
E como eles veem aquelas pessoas que discordam dessa mentalidade do direito adquirido, que discordam dessa avidez por coerção e dessa criminalidade em massa?  Ora, tais pessoas são evidentemente insensíveis e desapiedadas!  Elas não possuem consciência social!  Elas são ideólogas perigosas e extremistas sem qualquer espírito prático!
Que Deus não permita que elas jamais venham a exercer qualquer tipo de influência, por mais marginal que seja, sobre as “políticas públicas”.  Claro, esses extremistas podem ter alguma razão em relação a determinados excessos pontuais dos privilégios concedidos pela máquina estatal.  Eles podem nos ajudar a controlar alguns dos problemas criados por políticos e burocratas mais descontrolados.  Porém na maioria das vezes eles exageram muito!  Nada de impostos? Nada de regulamentações?  Direitos de propriedade invioláveis?  Ora, isso é loucura!
Mas, ao contrário, isso não é loucura alguma.  Pois a única diferença entre o ladrão “reconhecido como criminoso” e o membro da máquina estatal é que o ladrão faz ele próprio seu trabalho sujo.  Ele não obtém aparelhos de televisão, aparelhos de som e jóias por meio daquela modalidade de roubo conhecida como “política pública”.  Ao invés de recrutar políticos burocratas para roubar a propriedade alheia em benefício próprio, ele os poupa desse trabalho e faz o serviço sujo por conta própria.
Ao fazer isso, ele não pode justificar seus crimes recorrendo a argumentações baseadas em processos democráticos, mandatos políticos e outras noções estatistas.  É claro que ele pode ter suas próprias explicações racionais, mas estas serão muito mais tíbias do que aquela fervorosa avidez pelo imerecido que é exibida no âmbito político por lobistas, políticos e jornalistas estatistas.  Seja como for, não é de se surpreender que ele se sinta no direito de tomar a propriedade que não lhe pertence.  Essa é a menor das diferenças entre ele e os membros “comuns” da máquina estatal.
A explicação mais comum para aqueles crimes cometidos sob o manto das “políticas públicas” é que essas políticas são a “vontade do povo”, expressada por meio de seus representantes eleitos.  Porém, ainda que esse processo pudesse realmente determinar alguma expressão agregada de desejo popular  — e isso é extremamente duvidoso —, não pode haver algo como um grupo de pessoas com a capacidade de mudar o conteúdo da lei ou de retirar por meio do voto os direitos das pessoas.  Aqui podemos novamente recorrer a Spooner, que observa que
Se a justiça é um princípio natural, então ela é necessariamente um princípio imutável; e, assim como a lei da gravidade, as leis da ótica, os princípios da matemática ou qualquer outra lei natural ou princípio qualquer, a justiça não pode ser alterada por qualquer poder inferior àquele que a estabeleceu.  E todas as tentativas ou pretensões, da parte de qualquer homem ou conjunto de homens — estejam eles chamando a si próprios de governo ou de qualquer outro nome —, de estabelecer suas próprias ordens, vontades, prazeres ou critérios, no lugar da justiça, como uma regra de conduta para todos os seres humanos, representaria um absurdo, uma usurpação e uma tirana tão grandes quanto seriam suas tentativas de estabelecer suas próprias ordens, vontades, prazeres ou critérios no lugar de todas e quaisquer leis físicas, mentais e morais do universo.[3]
O que então quero dizer quando afirmo que vivemos em uma sociedade de criminosos?  Simplesmente estou querendo dizer que a vasta maioria das pessoas em nossa sociedade apóia atos criminosos cometidos contra terceiros.  Esses supostos cidadãos cumpridores da lei apóiam o roubo, a agressão, a transgressão e, algumas vezes, até o assassinato quando esses crimes são camuflados sob o respeitável manto das “políticas públicas”.  O desprezo com que eles veem os criminosos comuns é genuinamente risível quando se examina a criminalidade em massa que eles apóiam.
É claro que isso não quer dizer que todos os membros do público são moralmente equivalentes a ladrões ou outros criminosos.  Sua culpabilidade moral pode ser em certa medida descontada quando se sabe que eles estão rotineiramente submetidos a essa verdadeira enxurrada de propaganda estatista que nos cerca, algo que os ilude e confunde, e os estimula a acreditarem que têm o direito de decidir como os outros devem usar suas propriedades.
De fato podem existir alguns membros do público que ainda não perceberam a conexão entre coerção e “política pública”, e que estão completamente alheios ao fato de que há um paralelo entre essas políticas e as ações dos “criminosos comuns”.  Se esse é um erro honesto, então trata-se de um erro de conhecimento, e não de moralidade.  Entretanto, dificilmente pode-se afirmar que esse erro de conhecimento é amplamente disperso — na maioria dos casos, os membros do público estão bem cientes da natureza coerciva das políticas que defendem.  Ademais, o fato de não serem eles que “vão a campo” e fazem a pilhagem por conta própria, como faz um criminoso comum, não pode ser utilizado como desculpa para suavizar a natureza do delito — como se o fato de que o roubo lhes foi “dado” por seus senhores benevolentes abrandasse a transgressão.  Pois é exatamente essa grande massa do público que apóia o intenso e constante processo de “redistribuição” que ocorre na sociedade.
A atitude do público em relação ao “criminoso comum” gera uma óbvia pergunta.  Qual seria a possível razão que você teria para reclamar das ações desses criminosos quando você próprio apóia ou mesmo defende ações criminosas em escala muito maior?
Há uma lição em tudo isso para os libertários.  Se quisermos ter êxito ao apresentar nossas ideias para um grande público, precisamos ter em mente o fato de que as pessoas comuns rotineiramente apóiam o roubo e outros crimes cometidos pelo estado, mas ficam perplexas quando veem o mesmo crime sendo cometido por “criminosos comuns” (que na realidade são o tipo mais incomum dos bandidos).  Os defensores de uma sociedade genuinamente baseada na lei devem se esforçar para chamar a atenção para a contradição inerente a essa atitude.
Devemos alertar para os paralelos entre as “políticas públicas” do estado e os atos dos “criminosos comuns”.  Devemos aprender a apresentar ao público as políticas estatistas do jeito que elas são — criminalidade em larga escala.  E devemos aprender a convencer as pessoas de que o apoio delas a essas políticas é o equivalente a apoiar o crime.
Ao fazer isso, não basta apenas falar sobre livre mercado, desregulamentação, não intervencionismo etc. — isso seria o equivalente a combater os estatistas em seu próprio território, apresentando a questão como um mero confronto entre “políticas públicas” concorrentes.  O real combate, a verdadeira questão que está na raiz dos debates políticos, não envolve escolher entre uma política ou outra — é sobre escolher entre cometer crimes e não cometer crimes.
Com efeito, aquilo que é chamado de “livre mercado” é simplesmente o arranjo em que não há roubos, agressões, esbulhos etc. socialmente sancionados.  Aquilo que é chamado de “desregulamentação” é na realidade apenas a remoção de políticas que autorizam — isto é, que sancionam socialmente — que a pessoa e a propriedade sejam transgredidas.  Aquilo que é chamado de “descentralização do poder” é na realidade simplesmente a quebra de uma grande agência criminosa e sua consequente redução em várias pequenas agências criminosas concorrenciais, com o objetivo último de torná-las suficientemente diminutas e concorrentes (entre si) de modo a nos permitir escapar totalmente de suas garras.
Em suas raízes, a posição libertária é bastante simples e deve ser comunicada dessa forma.  Ela afirma que não se deve permitir que as pessoas cometam crimes contra as outras.  Toda a disputa acerca de livre mercadoversus intervencionismo, capitalismo versus socialismo, regulamentação versus desregulamentação, e assim por diante, é apenas uma forma mascarada de apresentar a dicotomia básica entre uma sociedade de criminosos e uma sociedade de leis.  Esta é a essência da batalha.
Uma batalha entre o livre mercado e seus antípodas, quando apresentada com a roupagem da filosofia política, é uma batalha esotérica.  É uma batalha que pode ser distorcida e adulterada.  Já uma batalha objetiva e clara entre criminalidade e lei é mais fácil de ser entendida e muito mais poderosa.  Os libertários não deveriam se esquivar de apresentar as “questões políticas” como elas verdadeiramente são: um confronto direto e claro entre criminalidade e leis.
Muitos foram intimidados a evitar essa abordagem, doutrinados que foram pela ideia de que essa “linguagem forte” iria assustar as pessoas, ou fazer com que os libertários parecessem exagerados e irracionais.  Mas é exatamente essa confrontação com o fato elementar — a saber, que o libertarianismo apóia uma sociedade de leis —, que é a mais poderosa arma para seus defensores.  Não há nada de errado em dizer às pessoas que tributação é roubo, que regulamentação é transgressão, que leis antidrogas são agressão e roubo, que políticos são criminosos, e que o estado é uma monstruosa agência criminosa.

sexta-feira, 14 de abril de 2017

Por que os piores políticos são eleitos

A lista de políticos com foro privilegiado que tiveram a abertura de inquérito autorizada por Edson Fachin evidenciou mais uma vez o nível dos personagens e do ambiente político nacional. Mas, afinal, por que isso ainda causa espanto e revolta? Porque a grande maioria das pessoas acredita que a política poderia ser outra coisa.

A crença de que devemos confiar ao estado a promoção do bem-estar social sustenta-se na idealização do “bom político”, do representante popular modelo de honestidade e de competência, cuja sabedoria e espiritualidade farão jus à confiança que a sociedade lhe conceder. Para ajudá-lo na construção da justiça social, a maior parte da sociedade idealiza um partido político diferente dos outros, cujos membros seriam tão honestos, tão competentes, tão sábios e espiritualizados quanto o seu líder – como o PT já foi visto um dia. A ingenuidade está em acreditar que existem seres humanos que dariam função social ao poder em vez de utilizá-lo em benefício próprio; e essas criaturas abnegadas seriam detectadas a partir dos discursos lindos e bonitinhos que fazem.

Friedrich Hayek, em seu livro O Caminho da Servidão, explica não apenas a impossibilidade de realização desse desejo, mas também a razão pela qual a política é preenchida sempre pelas pessoas menos aptas à administração do estado e do poder. Para tanto, Hayek identifica três condicionantes que se correlacionam por meio do sistema político mais admirado da humanidade, a democracia.

Em primeiro lugar, ele nos lembra que quanto maior o nível intelectual de um ser humano, maiores serão suas divergências sobre a grande maioria dos assuntos, afinal, a instrução amplia a visão sobre o mundo e nós mesmos. Diante disso, enxergamos que, “se quisermos encontrar um alto grau de uniformidade e semelhanças de pontos de vista, teremos de descer às camadas em que os padrões morais e intelectuais são inferiores e prevaleçam os instintos mais primitivos e comuns”, escreve Hayek, o que significa que é o menor denominador comum que elege um representante do povo. Para se comprovar o fundamento desse fenômeno, podemos correlacioná-lo à atenção que determinadas pessoas e assuntos cativam.

Quanto mais superficiais forem as letras de um cantor, mais fãs ele cativará. Entre um quadro de Romero Brito e um de Willys de Castro, a grande maioria das pessoas optará pelo primeiro para decorar a sala. Entre uma entrevista com um jogador de futebol e outra com um cientista, certamente o povão preferirá ouvir o atleta. Um discurso sobre “justiça social” e “redistribuição de renda” certamente atrairá a atenção de muito mais pessoas do que uma palestra sobre a curva de laffer ou sobre o princípio da escassez.

Uma teoria simples sobre a corrupção

Qual exatamente é o arranjo que gera incentivos para que políticos sejam corruptos? Mais: existe realmente uma maneira de ser diferente?
O intuito aqui é estabelecer uma teoria direta e concisa sobre a corrupção. 
O poder do estado — e, por conseguinte, o poder daqueles que detêm cargos de poder dentro da máquina estatal — é o poder de pilhar, usurpar e dar ordens. Quem detém o poder estatal detém a capacidade de se locupletar. A capacidade de se locupletar estando dentro da máquina estatal é a definição precípua de corrupção. A corrupção sistemática necessariamente acompanha um governo. Ela está presente na história de absolutamente todos os governos. Varia apenas a intensidade e o grau de exposição e de denúncia pela mídia.
A teoria por trás destas conexões é simples. 
Em primeiro lugar, o governo detém o monopólio da criação de legislações e emendas orçamentárias. E tal monopólio gera oportunidades para se roubar legalmente. Roubar legalmente significa aprovar uma lei, regulamentação ou emenda orçamentária que favoreça um determinado grupo à custa de todo o resto da economia, principalmente os pagadores de impostos.
Em segundo lugar, o governo, munido do dinheiro que coleta de impostos, detém o monopólio da escolha das empresas que farão as obras públicas que o governo julga adequadas. Esse processo de escolha, que dá à empresa vencedora acesso livre ao dinheiro da população — algo que não ocorre no livre mercado — é outra forma de roubo legalizado.
Grupos de interesse — por exemplo, grandes empresas, empreiteiras ou empresários com boas ligações políticas — ansiosos por adquirir vantagens que não conseguem obter no livre mercado irão procurar determinados políticos e fazer lobby para "convencê-los" a aprovar uma determinada legislação que lhes seja benéfica, ou para pressionar que sua empresa (ou empreiteira) seja a escolhida para uma obra pública.
A legislação pode ser desde a imposição de tarifas de importação até a criação de regulamentações que irão dificultar a entrada de novos concorrentes em um mercado específico. Pode também ser uma mera emenda orçamentária que irá beneficiar alguma empreiteira que será agraciada com a concessão de alguma obra pública. 
Mas há um problema: se esses legisladores não cobrarem um preço pelo seu voto favorável — isto é, se o custo para se fazer lobby for zero —, então a demanda por legislações específicas será infinita. Igualmente, se os políticos não cobrarem um preço das empreiteiras escolhidas para fazer as obras públicas, a demanda por obras públicas da parte das empreiteiras também será infinita.
Sendo assim, os legisladores terão de cobrar caro pelo seu voto com o intuito de estabelecer parâmetros para os espertalhões que estão brigando pelo seu voto favorável; e os políticos terão de cobrar um preço alto para fraudar o processo de licitação em prol de uma determinada empreiteira.
Para ambos os casos, o preço inclui contribuições de campanha, dinheiro em contas no exterior, favores corporativos, publicidade favorável, e vários outros. Suborno e propina são apenas as formas mais cruas desse leilão.
[N. do E.: no escândalo da Petrobras (o Petrolão), o dinheiro saía do caixa da estatal, pagava obras superfaturadas e, o que restava, voltava para o bolso dos políticos que estavam no comando da empresa na forma de propina paga por empreiteiros.
Em todos esses casos, o dinheiro público estará sendo desviado e desperdiçado, seja em obras superfaturadas, seja na criação de burocracias desnecessárias e que irão apenas encarecer os preços dos bens e serviços e reduzir sua qualidade. E quanto maior o volume de dinheiro público desviado, maior é a fatia que acaba indo parar no bolso desses próprios políticos.
O fato é que o voto destes políticos em prol da criação destas legislações anti-mercado ou destas emendas orçamentárias, bem como o fato de políticos comandarem estatais e escolherem as empreiteiras que farão suas obras, são um bem econômico para essas empresas. 
O resultado final é uma corrupção endêmica que não pode ser eliminada. E ela será tanto maior quanto maior for o tamanho e o escopo do estado. Não existe algo como um governo limpo e transparente.
Senadores, deputados e burocratas reguladores — todos estão, de uma forma ou de outra, propensos a esta atitude. Mesmo um político ou burocrata que seja genuinamente honesto pode ser acusado de conivência, pois não irá denunciar seus colegas.
Roubo e corrupção perpassam o governo em todas as suas atitudes e medidas. Todas as atitudes e medidas do governo sempre envolvem mentiras, injustiças, malversações, delitos, propinas, subornos, favorecimentos, fraudes, deturpações, negociatas, emendas favoráveis e exploração. E essas são apenas as coisas publicáveis.
A corrupção, aliás, já começa pela linguagem. "Contribuições de campanha" ou "doações" são apenas um eufemismo para 'propina'. Quem dá dinheiro a políticos o faz ou porque acredita no que eles dizem defender ou porque espera influenciar seus votos legislativos. Tais pessoas sempre esperam ganhar algo que necessariamente virá à custa de outros.  
Políticos que recebem contribuições de campanha se tornam meros porta-vozes dos interesses de seus financiadores. O dinheiro irá ajudar o candidato a criar uma coalizão que poderá usar o poder do estado em benefício de um determinado grupo de interesse sem sofrer nenhuma resistência excessiva. Afinal, trata-se de um roubo legalizado.  
Conclusão
A grande arte da política está em conseguir, simultaneamente, aplausos dos favorecidos e apoio dos que estão sendo roubados.
O político, em suma, gerencia um esquema de extorsão semelhante ao da máfia. Seu salário é pago pelas vítimas, ou seja, pelos pagadores de impostos que não têm voz ativa. Seus "complementos salariais" — o chamado "por fora" — são pagos por grupos de interesse, o que fará com que ele espolie ainda mais os pagadores de impostos. Tudo é feito com grande astúcia, sendo a função do político convencer as vítimas de que elas não estão sendo espoliadas.  Isso ele sempre consegue. O político é, acima de tudo, um falso. 
Corrupção sistemática — não apenas a corrupção que envolve meios financeiros, mas também a corrupção da linguagem e das atitudes — necessariamente acompanha um governo. Qualquer governo. E a corrupção é endêmica porque a política é a arte da ladroagem. 


terça-feira, 11 de abril de 2017

Teoria das Janelas Quebradas, tudo que você precisa saber

  A teoria das janelas quebradas ou "broken windows theory" é um modelo norte-americano de política de segurança pública no enfrentamento e combate ao crime, tendo como visão fundamental a desordem como fator de elevação dos índices da criminalidade. Nesse sentido, apregoa tal teoria que, se não forem reprimidos, os pequenos delitos ou contravenções conduzem, inevitavelmente, a condutas criminosas mais graves, em vista do descaso estatal em punir os responsáveis pelos crimes menos graves. Torna-se necessária, então, a efetiva atuação estatal no combate à criminalidade, seja ela a microcriminalidade ou a  macrocriminalidade.
 Há alguns anos, a Universidade de Stanford (EUA), realizou uma interessante experiência de psicologia social. Deixou dois carros idênticos, da mesma marca, modelo e cor, abandonados na rua. Um no Bronx, zona pobre e conflituosa de Nova York e o outro em Palo Alto, zona rica e tranquila da Califórnia. Dois carros idênticos abandonados, dois bairros com populações muito diferentes e uma equipe de especialistas em psicologia social estudando as condutas das pessoas em cada local.
 Resultado: o carro abandonado no Bronx começou a ser vandalizado em poucas horas. As rodas foram roubadas, depois o motor, os espelhos, o rádio, etc. Levaram tudo o que fosse aproveitável e aquilo que não puderam levar, destruíram. Contrariamente, o carro abandonado em Palo Alto manteve-se intacto.

  A experiência não terminou aí. Quando o carro abandonado no Bronx já estava desfeito e o de Palo Alto estava há uma semana impecável, os pesquisadores quebraram um vidro do automóvel de Palo Alto. Resultado: logo a seguir foi desencadeado o mesmo processo ocorrido no Bronx. Roubo, violência e vandalismo reduziram o veículo à mesma situação daquele deixado no bairro pobre. Por que o vidro quebrado na viatura abandonada num bairro supostamente seguro foi capaz de desencadear todo um processo delituoso? Evidentemente, não foi devido à pobreza. Trata-se de algo que tem a ver com a psicologia humana e com as relações sociais.
  Um vidro quebrado numa viatura abandonada transmite uma ideia de deterioração, de desinteresse, de despreocupação. Faz quebrar os códigos de convivência, faz supor que a lei encontra-se ausente, que naquele lugar não existem normas ou regras. Um vidro quebrado induz ao "vale-tudo". Cada novo ataque depredador reafirma e multiplica essa ideia, até que a escalada de atos cada vez piores torna-se incontrolável, desembocando numa violência irracional.
  Baseada nessa experiência e em outras análogas, foi desenvolvida a "Teoria das Janelas Quebradas". Sua conclusão é que o delito é maior nas zonas onde o descuido, a sujeira, a desordem e o maltrato são maiores. Se por alguma razão racha o vidro de uma janela de um edifício e ninguém o repara, muito rapidamente estarão quebrados todos os demais. Se uma comunidade exibe sinais de deterioração, e esse fato parece não importar a ninguém, isso fatalmente será fator de geração de delitos.

Origem da teoria
Janelas quebradas uma teoria do crime que merece reflexo  Essa teoria na verdade começou a ser desenvolvida em 1982, quando o cientista político James Q. Wilson e o psicólogo criminologista George Kelling, americanos, publicaram um estudo na revista Atlantic Monthly, estabelecendo, pela primeira vez, uma relação de causalidade entre desordem e criminalidade. Nesse estudo, utilizaram os autores da imagem das janelas quebradas para explicar como a desordem e a criminalidade poderiam, aos poucos, infiltrar-se na comunidade, causando a sua decadência e a consequente queda da qualidade de vida. O estudo realizado por esses criminologistas teve por base a experiência dos carros abandonados no Bronx e em Palo Alto.
  Em suas conclusões, esses especialistas acreditam que, ampliando a análise situacional, se por exemplo uma janela de uma fábrica ou escritório fosse quebrada e não fosse, incontinenti, consertada, quem por ali passasse e se deparasse com a cena logo iria concluir que ninguém se importava com a situação e que naquela localidade não havia autoridade responsável pela manutenção da ordem.
  Logo em seguida, as pessoas de bem deixariam aquela comunidade, relegando o bairro à mercê de gatunos e desordeiros, pois apenas pessoas desocupadas ou imprudentes se sentiriam à vontade para residir em uma rua cuja decadência se torna evidente. Pequenas desordens, portanto, levariam a grandes desordens e, posteriormente, ao crime.
  Da mesma forma, concluem os defensores da teoria, quando são cometidas "pequenas faltas" (estacionar em lugar proibido, exceder o limite de velocidade, passar com o sinal vermelho) e as mesmas não são sancionadas, logo começam as faltas maiores e os delitos cada vez mais graves. Se admitirmos atitudes violentas como algo normal no desenvolvimento das crianças, o padrão de desenvolvimento será de maior violência quando essas crianças se tornarem adultas.
  A Teoria das Janelas Quebradas definiu um novo marco no estudo da criminalidade ao apontar que a relação de causalidade entre a criminalidade e outros fatores sociais, tais como a pobreza ou a "segregação racial" é menos importante do que a relação entre a desordem e a criminalidade. Não seriam somente fatores ambientais (mesológicos) ou pessoais (biológicos) que teriam influência na formação da personalidade criminosa, contrariando os estudos da criminologia clássica.

segunda-feira, 10 de abril de 2017

Professor Giácomo Balbinotto Neto explica economia do crime

Professor Giácomo Balbinotto Neto, da Faculdade de Ciências Econômicas da UFRGS. O economista fala sobre a teoria econômica do crime, e como essa área do conhecimento pode contribuir para compreender e combater o crime.



domingo, 9 de abril de 2017

Crimes contra a honra pela Internet

A liberdade de expressão é inegavelmente um dos pilares mais fundamentais de sustentação do Regime Democrático, com amplo amparo constitucional. Dela decorre que a diversidade de ideias e pensamentos possibilita o confronto e a divergência de opiniões.
Não se trata, porém, de um direito absoluto, como, aliás, já decidiu o Supremo Tribunal Federal em diversas oportunidades, mas encontra um limite quando atinge a honra de outrem. Se no âmbito do interesse coletivo a Suprema Corte suspendeu a vigência da Lei de Imprensa (lEI 5.250/67), impedindo qualquer espécie de censura prévia (ADPF nº 130/DF), o mesmo não se dá automaticamente na relação entre particulares.
Cada vez mais comum é a prática de crimes contra a honra por meio da internet, seja por publicações em redes sociais, seja por comentários em sites ou por postagens em blogs. Praticamente qualquer assunto polêmico hoje pode ensejar debates que facilmente descambam para agressões morais, o que se constitui no primeiro passo para a prática de crimes mais graves.
Na Internet, o efetivo autor da informação é chamado de “provedor de informação”. Aquele que disponibiliza as informações criadas ou desenvolvidas pelos provedores de informação, utilizando servidores próprios ou de terceiros (“provedores de hospedagem”[1]) para armazená-las é chamado de “provedor de conteúdo”. Logo, pode ser altamente complexa a cadeia de autoria intelectual das informações compartilhadas, dificultando a apuração dos fatos, sobretudo porque os meios para a prática delitiva são também praticamente ilimitados e aumentam com a velocidade com que surgem novas tecnologias (áudio, vídeo, imagem, etc). Os autores desses fatos, portanto, tendem a sentir-se protegidos pelo anonimato ou pela facilidade de publicação a partir de qualquer lugar. Gradativamente, porém, a apuração dos crimes cometidos pela Internet vem se aprimorando.
A Internet é um espaço que congrega todos os credos e todas as correntes de pensamento. Por sua amplitude e relativa impessoalidade, costuma ser vista como ambiente seguro para críticas e comentários de toda ordem. Daí a dizer que se trata de um local imune à aplicação da lei civil e penal é um erro inconcebível, e mais, uma verdadeira negação do Estado de Direito.
Em 2014, através da Lei 12.965, editou-se o Marco Civil da Internet, onde foram estabelecidos princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil. Logo em seu art. 2º, consta que “A disciplina do uso da internet no Brasil tem como fundamento o respeito à liberdade de expressão”. O art. 3º elenca os princípios que regem a disciplina do uso da Internet, sendo o primeiro deles “garantia da liberdade de expressão, comunicação e manifestação de pensamento, nos termos da Constituição Federa”. E, no art. 8º, condiciona o pleno exercício do direito de acesso à Internet à garantia da liberdade de expressão.
Os crimes contra a honra estão tipificados no Capítulo V, do Título I (Crimes Contra a Pessoa), da Parte Especial do Código Penal, desde 1940. Portanto, é evidente sua desatualização ao contexto atual, onde as relações sociais estão cada vez mais virtualizadas e o próprio conceito de honra parece ter se alterado, na medida em que atos que constituíam ofensas gravíssimas no passado, hoje são aceitas como ordinárias pela coletividade.
Este fenômeno, que ocorre nesta esfera com muita intensidade, espraia-se por todos os ramos do Direito Penal, dada a sua dinamicidade. Todavia, com certo esforço interpretativo, os dispositivos legais que sancionam penalmente essas condutas não só podem como devem ser adaptados ao ambiente cibernético. Trata-se de uma imposição dos tempos modernos, válida também para novas condutas lesivas a interesses individuais ou coletivos que passaram a reclamar a intervenção penal.
Hoje, com as redes sociais fazendo parte intrínseca da vida comunitária dos indivíduos, a falsa imputação de crime (calúnia), a imputação de fatos ofensivos à reputação (difamação) e a ofensa à dignidade ou ao decoro (injúria) sem dúvida foram banalizadas. A ofensividade das condutas parece ter se diluído. É mais difícil atingir concretamente os bens jurídicos tutelados pelas normas penais que tipificam essas condutas (honra objetiva e honra subjetiva).
Parte disso talvez se deva à sensação de impunidade, na medida em que as penas são bastantes brandas e ensejam o cabimento das medidas despenalizadoras da transação penal e da suspensão condicional do processo, raramente conduzindo a condenações criminais, o que, de fato, não está equivocado. Embora o Direito Penal ainda cumpra um papel importante na contenção dessas condutas com o seu simbolismo sancionatório, certo é que torna-se cada vez mais inconcebível a aplicação da pena para tais espécies delitivas. De outro lado, a ausência de investigação efetiva por parte do Estado impede a apuração de violações muitas vezes realmente graves à pessoa ofendida.
O reconhecimento dessas práticas delitivas implica uma correspondente responsabilidade civil, cuja estipulação de um valor indenizatório mínimo pode ser definido na própria sentença penal condenatória. A questão é que o produto do crime não pode ficar disponível ad aeternum nos meios eletrônicos, pois não basta a punição do seu autor, é necessária a extirpação imediata do delito, do contrário permanecerá produzindo seus efeitos maléficos à vítima.
O próprio Poder Judiciário torna-se, pois, responsável pela propagação desses crimes contra a honra no meio virtual quando não determina imediatamente a remoção das publicações ofensivas daquele ambiente, onde atingem um sem-número de pessoas, causando grande abalo contra a honra de indivíduos.
Caberia, inclusive, ao Delegado de Polícia, exercendo a atribuição de apreensão dos objetos que tiverem relação com o fato (art. 6º, I, do CPP), tomar providências para preservar e indisponibilizar publicações ofensivas, quando os próprios provedores de hospedagem (redes sociais, p. ex.) assim não o fizerem após provocação administrativa.
Os crimes contra a honra pela Internet confrontam dois direitos fundamentais do cidadão. De um lado, a liberdade de expressão, que é, por preceito constitucional (art. 5º, IX), independente de censura ou licença. De outro, a honra, que é inviolável (art. 5º, X). Consequentemente, por ambos possuírem assento na Lei Fundamental, caberá ao juiz, no caso concreto, realizar a devida ponderação de qual interesse se sobrepõe, o que, sem dúvida não é (ou não deveria ser) tarefa fácil.