sábado, 15 de abril de 2017

Uma sociedade de criminosos

Recentemente, uma amiga queixou-se sobre um surto de arrombamentos que estavam ocorrendo na vizinhança de sua recém-comprada casa.  Uma casa mais à frente da dela havia sido arrombada há algumas semanas e, não muito tempo depois, foi a vez da casa ao lado.  Nesta, os ladrões levaram uma enorme televisão de plasma e um laptop, sendo que eles aparentemente saíram andando da casa com a mercadoria à plena luz do dia.
Minha amiga estava evidentemente indignada com toda essa roubalheira — exatamente como deveria — e parecia ter dificuldades para entender como os ladrões tiveram a petulância de arrombar uma casa e levar aquilo que não lhes pertencia.  “Como ousam?!”, disse ela.  “O que os fazem pensar que têm o direito de fazer isso?”
É uma pergunta justa.  O que os fazem pensar que têm o direito de fazer isso?  Bom, talvez eles saibam que não têm o direito de fazer isso, mas o fazem assim mesmo porque seu desejo de obter o imerecido (aquilo que não foi ganho pelo trabalho) é maior do que seu respeito pelos direitos de propriedade de terceiros.  Talvez os ladrões racionalizaram seu crime com base em alguma suposta necessidade; necessidade essa produzida — sem dúvida — pelo fato de terem sido “marginalizados” pela sociedade.
Sobre as atitudes desses ladrões em particular, podemos apenas especular.  Porém, em um sentido mais amplo, podemos perguntar: Por que será que um criminoso sente-se confortável tomando uma propriedade que ele não adquiriu por merecimento próprio?
Após ouvir o relato de minha amiga, concordei plenamente que os ladrões que haviam pilhado seus vizinhos (tinha de ser mais de um para poder carregar o grande aparelho de TV) não tinham nenhum direito de obter essa propriedade que não lhes pertencia, e que ela tinha toda razão de estar brava.  Entretanto, por estar sempre em alerta à espera de uma oportunidade para disseminar o pensamento libertário, também aproveitei para informá-la que a conduta dos ladrões em nada diferia fundamentalmente da conduta da maioria das pessoas da sociedade, as quais rotineiramente defendem ou aceitam o roubo de propriedade que não é delas.
Ah, mas é claro que não!  É claro que somente um salafrário dos mais torpes poderia achar que tem o direito de roubar a propriedade dos outros!  Nenhum cidadão “cumpridor das leis” iria aceitar tal coisa!  Iria?
Bem, vejamos: suponha que um indivíduo tenha a grande perspicácia de perceber que algumas pessoas não têm tanto dinheiro quanto as outras, e que seria bom se elas tivessem mais dinheiro do que têm atualmente.  Para remediar esse problema, o iluminado propõe que um grupo de generosos benfeitores crie uma agência cuja função seja tomar forçosamente o dinheiro de terceiros sem a permissão destes (ou seja, roubá-los), e dar uma parte do roubo para aquelas pessoas que consideram “necessitadas”.  O grupo, então, utilizaria o que sobrou do roubo para:
1) deturpar a moral dos recebedores, fazendo-os crer que têm um direito adquirido sobre esse dinheiro roubado;
2) financiar propagandas que mostram a todos o ótimo trabalho que a agência está fazendo; e
3) gradualmente construir um pequeno e lucrativo império para a equipe de funcionários no comando da agência, que têm o sucesso dos grandes bandidos — ganhando muito mais do que ganhariam em outros empregos, ao mesmo tempo em que são enaltecidos pelo seu “serviço público”.
As pessoas ficam indignadas com esse arranjo?  Elas chamam a polícia para denunciar essa extorsão?  Elas formam comitivas para ir aos gabinetes de seus representantes eleitos e exigir que essa abominável agência seja abolida?  Não, elas não fazem nada disso.  Na realidade, ocorre exatamente o oposto: as pessoas se aglomeram e se atropelam para dizer o quanto apóiam esse sistema, tomando o máximo de cuidado para não deixar escapar nenhuma crítica a qualquer excesso que porventura tal sistema possa cometer, como que para deixar claro que elas realmente se “importam” com “os pobres”.
Os exemplos da abundância desse tipo de criminalidade e do abundante apoio aos — ou pelo menos condescendência para com — programas que praticam tais crimes são extremamente extensos.  O fato é que, nesse ambiente, não é de se surpreender que os ladrões tenham poucos escrúpulos e não hesitem em tomar propriedade que não lhes pertence.  A razão para esse sentimento é provavelmente muito similar à razão por que a vasta maioria das pessoas em nossa sociedade acha que tem direito sobre a propriedade dos outros:vivemos em uma sociedade de criminosos.
Mas como assim?  A maioria das pessoas não obedece às leis?  Elas não pagam seus impostos e dirigem apenas quando têm carteira de motorista, como qualquer bom cidadão “cumpridor da lei”?  Elas não obedecem às regulamentações trabalhistas, às regulamentações ambientais, aos regulamentos tributários, e a todas as outras coisas que seus representantes eleitos mandam?
Bom, sim — na medida em que é possível cumprir com esse enorme e frequentemente vago ou contraditório emaranhado de regras, a maioria das pessoas o faz.  Mas isso não é obediência à lei; isso é obediência àlegislação.  Trata-se meramente de obedecer aos decretos dos detentores do poder.
Com efeito, as únicas regras de conduta que podem adequadamente ser chamadas de “leis” são as regras das leis naturais — aquelas regras de conduta objetivas que são tidas como moralmente adequadas em decorrência da natureza do homem.[1]  Essas regras consistem essencialmente no princípio da não agressão e nas regras da apropriação original e da livre troca de propriedade, que são a base da teoria libertária da justiça.  Em sua discussão sobre a lei natural, o grande teórico jurídico Lysander Spooner apresenta as condições desta lei:
As condições são simplesmente essas: primeiro, que cada homem deve fazer, em relação a todos os outros, tudo o que a justiça requer que ele faça; como, por exemplo, que ele deve pagar suas dívidas, que ele deve devolver ao dono a propriedade que foi roubada deste ou que lhe foi tomada emprestada, e que ele deve reparar qualquer dano que porventura possa ter causado para a pessoa ou propriedade de outro.  A segunda condição é que cada homem deve se abster de fazer ao outro qualquer coisa que a justiça o proíba de fazer; como, por exemplo, que ele deve se abster de praticar furto, roubo, incêndio criminoso, assassinato ou qualquer outro crime contra a pessoa ou a propriedade de outro.[2]
Portanto, como as pessoas se saem quando avaliadas em sua conduta em relação a esta lei — em relação à lei?  Nada bem.  Aliás, quando se avalia sob essa perspectiva, a imensa maioria das pessoas aprova atos criminosos.
As pessoas frequentemente se surpreendem com a mentalidade dos “criminosos comuns” (ou seja, criminosos da variedade genuinamente reconhecida como criminosa) porque elas acham que a atitude desses criminosos — de achar que podem adquirir bens imerecidos, que não foram ganhos por meio do trabalho — é um defeito relativamente escasso.  Mas não é.  Com efeito, a vasta maioria dos membros do público se sente perfeitamente no direito de arrebatar a propriedade de terceiros.  Eles exigem que as propriedades de terceiros sejam confiscadas por meio do sistema tributário e de outras “políticas públicas”, ou que se interfira forçosamente nelas por meio de “regulamentações” rotineiras.
Mesmo que eles não sejam os beneficiários líquidos nesse sistema, mesmo que eles entreguem em impostos muito mais do que jamais receberão desse esquema extorsivo, é provável que eles ainda assim apóiem várias “políticas públicas” que, na prática, equivalem a um roubo ou a uma violação da pessoa e da propriedade de terceiros.
E como eles veem aquelas pessoas que discordam dessa mentalidade do direito adquirido, que discordam dessa avidez por coerção e dessa criminalidade em massa?  Ora, tais pessoas são evidentemente insensíveis e desapiedadas!  Elas não possuem consciência social!  Elas são ideólogas perigosas e extremistas sem qualquer espírito prático!
Que Deus não permita que elas jamais venham a exercer qualquer tipo de influência, por mais marginal que seja, sobre as “políticas públicas”.  Claro, esses extremistas podem ter alguma razão em relação a determinados excessos pontuais dos privilégios concedidos pela máquina estatal.  Eles podem nos ajudar a controlar alguns dos problemas criados por políticos e burocratas mais descontrolados.  Porém na maioria das vezes eles exageram muito!  Nada de impostos? Nada de regulamentações?  Direitos de propriedade invioláveis?  Ora, isso é loucura!
Mas, ao contrário, isso não é loucura alguma.  Pois a única diferença entre o ladrão “reconhecido como criminoso” e o membro da máquina estatal é que o ladrão faz ele próprio seu trabalho sujo.  Ele não obtém aparelhos de televisão, aparelhos de som e jóias por meio daquela modalidade de roubo conhecida como “política pública”.  Ao invés de recrutar políticos burocratas para roubar a propriedade alheia em benefício próprio, ele os poupa desse trabalho e faz o serviço sujo por conta própria.
Ao fazer isso, ele não pode justificar seus crimes recorrendo a argumentações baseadas em processos democráticos, mandatos políticos e outras noções estatistas.  É claro que ele pode ter suas próprias explicações racionais, mas estas serão muito mais tíbias do que aquela fervorosa avidez pelo imerecido que é exibida no âmbito político por lobistas, políticos e jornalistas estatistas.  Seja como for, não é de se surpreender que ele se sinta no direito de tomar a propriedade que não lhe pertence.  Essa é a menor das diferenças entre ele e os membros “comuns” da máquina estatal.
A explicação mais comum para aqueles crimes cometidos sob o manto das “políticas públicas” é que essas políticas são a “vontade do povo”, expressada por meio de seus representantes eleitos.  Porém, ainda que esse processo pudesse realmente determinar alguma expressão agregada de desejo popular  — e isso é extremamente duvidoso —, não pode haver algo como um grupo de pessoas com a capacidade de mudar o conteúdo da lei ou de retirar por meio do voto os direitos das pessoas.  Aqui podemos novamente recorrer a Spooner, que observa que
Se a justiça é um princípio natural, então ela é necessariamente um princípio imutável; e, assim como a lei da gravidade, as leis da ótica, os princípios da matemática ou qualquer outra lei natural ou princípio qualquer, a justiça não pode ser alterada por qualquer poder inferior àquele que a estabeleceu.  E todas as tentativas ou pretensões, da parte de qualquer homem ou conjunto de homens — estejam eles chamando a si próprios de governo ou de qualquer outro nome —, de estabelecer suas próprias ordens, vontades, prazeres ou critérios, no lugar da justiça, como uma regra de conduta para todos os seres humanos, representaria um absurdo, uma usurpação e uma tirana tão grandes quanto seriam suas tentativas de estabelecer suas próprias ordens, vontades, prazeres ou critérios no lugar de todas e quaisquer leis físicas, mentais e morais do universo.[3]
O que então quero dizer quando afirmo que vivemos em uma sociedade de criminosos?  Simplesmente estou querendo dizer que a vasta maioria das pessoas em nossa sociedade apóia atos criminosos cometidos contra terceiros.  Esses supostos cidadãos cumpridores da lei apóiam o roubo, a agressão, a transgressão e, algumas vezes, até o assassinato quando esses crimes são camuflados sob o respeitável manto das “políticas públicas”.  O desprezo com que eles veem os criminosos comuns é genuinamente risível quando se examina a criminalidade em massa que eles apóiam.
É claro que isso não quer dizer que todos os membros do público são moralmente equivalentes a ladrões ou outros criminosos.  Sua culpabilidade moral pode ser em certa medida descontada quando se sabe que eles estão rotineiramente submetidos a essa verdadeira enxurrada de propaganda estatista que nos cerca, algo que os ilude e confunde, e os estimula a acreditarem que têm o direito de decidir como os outros devem usar suas propriedades.
De fato podem existir alguns membros do público que ainda não perceberam a conexão entre coerção e “política pública”, e que estão completamente alheios ao fato de que há um paralelo entre essas políticas e as ações dos “criminosos comuns”.  Se esse é um erro honesto, então trata-se de um erro de conhecimento, e não de moralidade.  Entretanto, dificilmente pode-se afirmar que esse erro de conhecimento é amplamente disperso — na maioria dos casos, os membros do público estão bem cientes da natureza coerciva das políticas que defendem.  Ademais, o fato de não serem eles que “vão a campo” e fazem a pilhagem por conta própria, como faz um criminoso comum, não pode ser utilizado como desculpa para suavizar a natureza do delito — como se o fato de que o roubo lhes foi “dado” por seus senhores benevolentes abrandasse a transgressão.  Pois é exatamente essa grande massa do público que apóia o intenso e constante processo de “redistribuição” que ocorre na sociedade.
A atitude do público em relação ao “criminoso comum” gera uma óbvia pergunta.  Qual seria a possível razão que você teria para reclamar das ações desses criminosos quando você próprio apóia ou mesmo defende ações criminosas em escala muito maior?
Há uma lição em tudo isso para os libertários.  Se quisermos ter êxito ao apresentar nossas ideias para um grande público, precisamos ter em mente o fato de que as pessoas comuns rotineiramente apóiam o roubo e outros crimes cometidos pelo estado, mas ficam perplexas quando veem o mesmo crime sendo cometido por “criminosos comuns” (que na realidade são o tipo mais incomum dos bandidos).  Os defensores de uma sociedade genuinamente baseada na lei devem se esforçar para chamar a atenção para a contradição inerente a essa atitude.
Devemos alertar para os paralelos entre as “políticas públicas” do estado e os atos dos “criminosos comuns”.  Devemos aprender a apresentar ao público as políticas estatistas do jeito que elas são — criminalidade em larga escala.  E devemos aprender a convencer as pessoas de que o apoio delas a essas políticas é o equivalente a apoiar o crime.
Ao fazer isso, não basta apenas falar sobre livre mercado, desregulamentação, não intervencionismo etc. — isso seria o equivalente a combater os estatistas em seu próprio território, apresentando a questão como um mero confronto entre “políticas públicas” concorrentes.  O real combate, a verdadeira questão que está na raiz dos debates políticos, não envolve escolher entre uma política ou outra — é sobre escolher entre cometer crimes e não cometer crimes.
Com efeito, aquilo que é chamado de “livre mercado” é simplesmente o arranjo em que não há roubos, agressões, esbulhos etc. socialmente sancionados.  Aquilo que é chamado de “desregulamentação” é na realidade apenas a remoção de políticas que autorizam — isto é, que sancionam socialmente — que a pessoa e a propriedade sejam transgredidas.  Aquilo que é chamado de “descentralização do poder” é na realidade simplesmente a quebra de uma grande agência criminosa e sua consequente redução em várias pequenas agências criminosas concorrenciais, com o objetivo último de torná-las suficientemente diminutas e concorrentes (entre si) de modo a nos permitir escapar totalmente de suas garras.
Em suas raízes, a posição libertária é bastante simples e deve ser comunicada dessa forma.  Ela afirma que não se deve permitir que as pessoas cometam crimes contra as outras.  Toda a disputa acerca de livre mercadoversus intervencionismo, capitalismo versus socialismo, regulamentação versus desregulamentação, e assim por diante, é apenas uma forma mascarada de apresentar a dicotomia básica entre uma sociedade de criminosos e uma sociedade de leis.  Esta é a essência da batalha.
Uma batalha entre o livre mercado e seus antípodas, quando apresentada com a roupagem da filosofia política, é uma batalha esotérica.  É uma batalha que pode ser distorcida e adulterada.  Já uma batalha objetiva e clara entre criminalidade e lei é mais fácil de ser entendida e muito mais poderosa.  Os libertários não deveriam se esquivar de apresentar as “questões políticas” como elas verdadeiramente são: um confronto direto e claro entre criminalidade e leis.
Muitos foram intimidados a evitar essa abordagem, doutrinados que foram pela ideia de que essa “linguagem forte” iria assustar as pessoas, ou fazer com que os libertários parecessem exagerados e irracionais.  Mas é exatamente essa confrontação com o fato elementar — a saber, que o libertarianismo apóia uma sociedade de leis —, que é a mais poderosa arma para seus defensores.  Não há nada de errado em dizer às pessoas que tributação é roubo, que regulamentação é transgressão, que leis antidrogas são agressão e roubo, que políticos são criminosos, e que o estado é uma monstruosa agência criminosa.

sexta-feira, 14 de abril de 2017

Por que os piores políticos são eleitos

A lista de políticos com foro privilegiado que tiveram a abertura de inquérito autorizada por Edson Fachin evidenciou mais uma vez o nível dos personagens e do ambiente político nacional. Mas, afinal, por que isso ainda causa espanto e revolta? Porque a grande maioria das pessoas acredita que a política poderia ser outra coisa.

A crença de que devemos confiar ao estado a promoção do bem-estar social sustenta-se na idealização do “bom político”, do representante popular modelo de honestidade e de competência, cuja sabedoria e espiritualidade farão jus à confiança que a sociedade lhe conceder. Para ajudá-lo na construção da justiça social, a maior parte da sociedade idealiza um partido político diferente dos outros, cujos membros seriam tão honestos, tão competentes, tão sábios e espiritualizados quanto o seu líder – como o PT já foi visto um dia. A ingenuidade está em acreditar que existem seres humanos que dariam função social ao poder em vez de utilizá-lo em benefício próprio; e essas criaturas abnegadas seriam detectadas a partir dos discursos lindos e bonitinhos que fazem.

Friedrich Hayek, em seu livro O Caminho da Servidão, explica não apenas a impossibilidade de realização desse desejo, mas também a razão pela qual a política é preenchida sempre pelas pessoas menos aptas à administração do estado e do poder. Para tanto, Hayek identifica três condicionantes que se correlacionam por meio do sistema político mais admirado da humanidade, a democracia.

Em primeiro lugar, ele nos lembra que quanto maior o nível intelectual de um ser humano, maiores serão suas divergências sobre a grande maioria dos assuntos, afinal, a instrução amplia a visão sobre o mundo e nós mesmos. Diante disso, enxergamos que, “se quisermos encontrar um alto grau de uniformidade e semelhanças de pontos de vista, teremos de descer às camadas em que os padrões morais e intelectuais são inferiores e prevaleçam os instintos mais primitivos e comuns”, escreve Hayek, o que significa que é o menor denominador comum que elege um representante do povo. Para se comprovar o fundamento desse fenômeno, podemos correlacioná-lo à atenção que determinadas pessoas e assuntos cativam.

Quanto mais superficiais forem as letras de um cantor, mais fãs ele cativará. Entre um quadro de Romero Brito e um de Willys de Castro, a grande maioria das pessoas optará pelo primeiro para decorar a sala. Entre uma entrevista com um jogador de futebol e outra com um cientista, certamente o povão preferirá ouvir o atleta. Um discurso sobre “justiça social” e “redistribuição de renda” certamente atrairá a atenção de muito mais pessoas do que uma palestra sobre a curva de laffer ou sobre o princípio da escassez.

Uma teoria simples sobre a corrupção

Qual exatamente é o arranjo que gera incentivos para que políticos sejam corruptos? Mais: existe realmente uma maneira de ser diferente?
O intuito aqui é estabelecer uma teoria direta e concisa sobre a corrupção. 
O poder do estado — e, por conseguinte, o poder daqueles que detêm cargos de poder dentro da máquina estatal — é o poder de pilhar, usurpar e dar ordens. Quem detém o poder estatal detém a capacidade de se locupletar. A capacidade de se locupletar estando dentro da máquina estatal é a definição precípua de corrupção. A corrupção sistemática necessariamente acompanha um governo. Ela está presente na história de absolutamente todos os governos. Varia apenas a intensidade e o grau de exposição e de denúncia pela mídia.
A teoria por trás destas conexões é simples. 
Em primeiro lugar, o governo detém o monopólio da criação de legislações e emendas orçamentárias. E tal monopólio gera oportunidades para se roubar legalmente. Roubar legalmente significa aprovar uma lei, regulamentação ou emenda orçamentária que favoreça um determinado grupo à custa de todo o resto da economia, principalmente os pagadores de impostos.
Em segundo lugar, o governo, munido do dinheiro que coleta de impostos, detém o monopólio da escolha das empresas que farão as obras públicas que o governo julga adequadas. Esse processo de escolha, que dá à empresa vencedora acesso livre ao dinheiro da população — algo que não ocorre no livre mercado — é outra forma de roubo legalizado.
Grupos de interesse — por exemplo, grandes empresas, empreiteiras ou empresários com boas ligações políticas — ansiosos por adquirir vantagens que não conseguem obter no livre mercado irão procurar determinados políticos e fazer lobby para "convencê-los" a aprovar uma determinada legislação que lhes seja benéfica, ou para pressionar que sua empresa (ou empreiteira) seja a escolhida para uma obra pública.
A legislação pode ser desde a imposição de tarifas de importação até a criação de regulamentações que irão dificultar a entrada de novos concorrentes em um mercado específico. Pode também ser uma mera emenda orçamentária que irá beneficiar alguma empreiteira que será agraciada com a concessão de alguma obra pública. 
Mas há um problema: se esses legisladores não cobrarem um preço pelo seu voto favorável — isto é, se o custo para se fazer lobby for zero —, então a demanda por legislações específicas será infinita. Igualmente, se os políticos não cobrarem um preço das empreiteiras escolhidas para fazer as obras públicas, a demanda por obras públicas da parte das empreiteiras também será infinita.
Sendo assim, os legisladores terão de cobrar caro pelo seu voto com o intuito de estabelecer parâmetros para os espertalhões que estão brigando pelo seu voto favorável; e os políticos terão de cobrar um preço alto para fraudar o processo de licitação em prol de uma determinada empreiteira.
Para ambos os casos, o preço inclui contribuições de campanha, dinheiro em contas no exterior, favores corporativos, publicidade favorável, e vários outros. Suborno e propina são apenas as formas mais cruas desse leilão.
[N. do E.: no escândalo da Petrobras (o Petrolão), o dinheiro saía do caixa da estatal, pagava obras superfaturadas e, o que restava, voltava para o bolso dos políticos que estavam no comando da empresa na forma de propina paga por empreiteiros.
Em todos esses casos, o dinheiro público estará sendo desviado e desperdiçado, seja em obras superfaturadas, seja na criação de burocracias desnecessárias e que irão apenas encarecer os preços dos bens e serviços e reduzir sua qualidade. E quanto maior o volume de dinheiro público desviado, maior é a fatia que acaba indo parar no bolso desses próprios políticos.
O fato é que o voto destes políticos em prol da criação destas legislações anti-mercado ou destas emendas orçamentárias, bem como o fato de políticos comandarem estatais e escolherem as empreiteiras que farão suas obras, são um bem econômico para essas empresas. 
O resultado final é uma corrupção endêmica que não pode ser eliminada. E ela será tanto maior quanto maior for o tamanho e o escopo do estado. Não existe algo como um governo limpo e transparente.
Senadores, deputados e burocratas reguladores — todos estão, de uma forma ou de outra, propensos a esta atitude. Mesmo um político ou burocrata que seja genuinamente honesto pode ser acusado de conivência, pois não irá denunciar seus colegas.
Roubo e corrupção perpassam o governo em todas as suas atitudes e medidas. Todas as atitudes e medidas do governo sempre envolvem mentiras, injustiças, malversações, delitos, propinas, subornos, favorecimentos, fraudes, deturpações, negociatas, emendas favoráveis e exploração. E essas são apenas as coisas publicáveis.
A corrupção, aliás, já começa pela linguagem. "Contribuições de campanha" ou "doações" são apenas um eufemismo para 'propina'. Quem dá dinheiro a políticos o faz ou porque acredita no que eles dizem defender ou porque espera influenciar seus votos legislativos. Tais pessoas sempre esperam ganhar algo que necessariamente virá à custa de outros.  
Políticos que recebem contribuições de campanha se tornam meros porta-vozes dos interesses de seus financiadores. O dinheiro irá ajudar o candidato a criar uma coalizão que poderá usar o poder do estado em benefício de um determinado grupo de interesse sem sofrer nenhuma resistência excessiva. Afinal, trata-se de um roubo legalizado.  
Conclusão
A grande arte da política está em conseguir, simultaneamente, aplausos dos favorecidos e apoio dos que estão sendo roubados.
O político, em suma, gerencia um esquema de extorsão semelhante ao da máfia. Seu salário é pago pelas vítimas, ou seja, pelos pagadores de impostos que não têm voz ativa. Seus "complementos salariais" — o chamado "por fora" — são pagos por grupos de interesse, o que fará com que ele espolie ainda mais os pagadores de impostos. Tudo é feito com grande astúcia, sendo a função do político convencer as vítimas de que elas não estão sendo espoliadas.  Isso ele sempre consegue. O político é, acima de tudo, um falso. 
Corrupção sistemática — não apenas a corrupção que envolve meios financeiros, mas também a corrupção da linguagem e das atitudes — necessariamente acompanha um governo. Qualquer governo. E a corrupção é endêmica porque a política é a arte da ladroagem. 


terça-feira, 11 de abril de 2017

Teoria das Janelas Quebradas, tudo que você precisa saber

  A teoria das janelas quebradas ou "broken windows theory" é um modelo norte-americano de política de segurança pública no enfrentamento e combate ao crime, tendo como visão fundamental a desordem como fator de elevação dos índices da criminalidade. Nesse sentido, apregoa tal teoria que, se não forem reprimidos, os pequenos delitos ou contravenções conduzem, inevitavelmente, a condutas criminosas mais graves, em vista do descaso estatal em punir os responsáveis pelos crimes menos graves. Torna-se necessária, então, a efetiva atuação estatal no combate à criminalidade, seja ela a microcriminalidade ou a  macrocriminalidade.
 Há alguns anos, a Universidade de Stanford (EUA), realizou uma interessante experiência de psicologia social. Deixou dois carros idênticos, da mesma marca, modelo e cor, abandonados na rua. Um no Bronx, zona pobre e conflituosa de Nova York e o outro em Palo Alto, zona rica e tranquila da Califórnia. Dois carros idênticos abandonados, dois bairros com populações muito diferentes e uma equipe de especialistas em psicologia social estudando as condutas das pessoas em cada local.
 Resultado: o carro abandonado no Bronx começou a ser vandalizado em poucas horas. As rodas foram roubadas, depois o motor, os espelhos, o rádio, etc. Levaram tudo o que fosse aproveitável e aquilo que não puderam levar, destruíram. Contrariamente, o carro abandonado em Palo Alto manteve-se intacto.

  A experiência não terminou aí. Quando o carro abandonado no Bronx já estava desfeito e o de Palo Alto estava há uma semana impecável, os pesquisadores quebraram um vidro do automóvel de Palo Alto. Resultado: logo a seguir foi desencadeado o mesmo processo ocorrido no Bronx. Roubo, violência e vandalismo reduziram o veículo à mesma situação daquele deixado no bairro pobre. Por que o vidro quebrado na viatura abandonada num bairro supostamente seguro foi capaz de desencadear todo um processo delituoso? Evidentemente, não foi devido à pobreza. Trata-se de algo que tem a ver com a psicologia humana e com as relações sociais.
  Um vidro quebrado numa viatura abandonada transmite uma ideia de deterioração, de desinteresse, de despreocupação. Faz quebrar os códigos de convivência, faz supor que a lei encontra-se ausente, que naquele lugar não existem normas ou regras. Um vidro quebrado induz ao "vale-tudo". Cada novo ataque depredador reafirma e multiplica essa ideia, até que a escalada de atos cada vez piores torna-se incontrolável, desembocando numa violência irracional.
  Baseada nessa experiência e em outras análogas, foi desenvolvida a "Teoria das Janelas Quebradas". Sua conclusão é que o delito é maior nas zonas onde o descuido, a sujeira, a desordem e o maltrato são maiores. Se por alguma razão racha o vidro de uma janela de um edifício e ninguém o repara, muito rapidamente estarão quebrados todos os demais. Se uma comunidade exibe sinais de deterioração, e esse fato parece não importar a ninguém, isso fatalmente será fator de geração de delitos.

Origem da teoria
Janelas quebradas uma teoria do crime que merece reflexo  Essa teoria na verdade começou a ser desenvolvida em 1982, quando o cientista político James Q. Wilson e o psicólogo criminologista George Kelling, americanos, publicaram um estudo na revista Atlantic Monthly, estabelecendo, pela primeira vez, uma relação de causalidade entre desordem e criminalidade. Nesse estudo, utilizaram os autores da imagem das janelas quebradas para explicar como a desordem e a criminalidade poderiam, aos poucos, infiltrar-se na comunidade, causando a sua decadência e a consequente queda da qualidade de vida. O estudo realizado por esses criminologistas teve por base a experiência dos carros abandonados no Bronx e em Palo Alto.
  Em suas conclusões, esses especialistas acreditam que, ampliando a análise situacional, se por exemplo uma janela de uma fábrica ou escritório fosse quebrada e não fosse, incontinenti, consertada, quem por ali passasse e se deparasse com a cena logo iria concluir que ninguém se importava com a situação e que naquela localidade não havia autoridade responsável pela manutenção da ordem.
  Logo em seguida, as pessoas de bem deixariam aquela comunidade, relegando o bairro à mercê de gatunos e desordeiros, pois apenas pessoas desocupadas ou imprudentes se sentiriam à vontade para residir em uma rua cuja decadência se torna evidente. Pequenas desordens, portanto, levariam a grandes desordens e, posteriormente, ao crime.
  Da mesma forma, concluem os defensores da teoria, quando são cometidas "pequenas faltas" (estacionar em lugar proibido, exceder o limite de velocidade, passar com o sinal vermelho) e as mesmas não são sancionadas, logo começam as faltas maiores e os delitos cada vez mais graves. Se admitirmos atitudes violentas como algo normal no desenvolvimento das crianças, o padrão de desenvolvimento será de maior violência quando essas crianças se tornarem adultas.
  A Teoria das Janelas Quebradas definiu um novo marco no estudo da criminalidade ao apontar que a relação de causalidade entre a criminalidade e outros fatores sociais, tais como a pobreza ou a "segregação racial" é menos importante do que a relação entre a desordem e a criminalidade. Não seriam somente fatores ambientais (mesológicos) ou pessoais (biológicos) que teriam influência na formação da personalidade criminosa, contrariando os estudos da criminologia clássica.

segunda-feira, 10 de abril de 2017

Professor Giácomo Balbinotto Neto explica economia do crime

Professor Giácomo Balbinotto Neto, da Faculdade de Ciências Econômicas da UFRGS. O economista fala sobre a teoria econômica do crime, e como essa área do conhecimento pode contribuir para compreender e combater o crime.



domingo, 9 de abril de 2017

Crimes contra a honra pela Internet

A liberdade de expressão é inegavelmente um dos pilares mais fundamentais de sustentação do Regime Democrático, com amplo amparo constitucional. Dela decorre que a diversidade de ideias e pensamentos possibilita o confronto e a divergência de opiniões.
Não se trata, porém, de um direito absoluto, como, aliás, já decidiu o Supremo Tribunal Federal em diversas oportunidades, mas encontra um limite quando atinge a honra de outrem. Se no âmbito do interesse coletivo a Suprema Corte suspendeu a vigência da Lei de Imprensa (lEI 5.250/67), impedindo qualquer espécie de censura prévia (ADPF nº 130/DF), o mesmo não se dá automaticamente na relação entre particulares.
Cada vez mais comum é a prática de crimes contra a honra por meio da internet, seja por publicações em redes sociais, seja por comentários em sites ou por postagens em blogs. Praticamente qualquer assunto polêmico hoje pode ensejar debates que facilmente descambam para agressões morais, o que se constitui no primeiro passo para a prática de crimes mais graves.
Na Internet, o efetivo autor da informação é chamado de “provedor de informação”. Aquele que disponibiliza as informações criadas ou desenvolvidas pelos provedores de informação, utilizando servidores próprios ou de terceiros (“provedores de hospedagem”[1]) para armazená-las é chamado de “provedor de conteúdo”. Logo, pode ser altamente complexa a cadeia de autoria intelectual das informações compartilhadas, dificultando a apuração dos fatos, sobretudo porque os meios para a prática delitiva são também praticamente ilimitados e aumentam com a velocidade com que surgem novas tecnologias (áudio, vídeo, imagem, etc). Os autores desses fatos, portanto, tendem a sentir-se protegidos pelo anonimato ou pela facilidade de publicação a partir de qualquer lugar. Gradativamente, porém, a apuração dos crimes cometidos pela Internet vem se aprimorando.
A Internet é um espaço que congrega todos os credos e todas as correntes de pensamento. Por sua amplitude e relativa impessoalidade, costuma ser vista como ambiente seguro para críticas e comentários de toda ordem. Daí a dizer que se trata de um local imune à aplicação da lei civil e penal é um erro inconcebível, e mais, uma verdadeira negação do Estado de Direito.
Em 2014, através da Lei 12.965, editou-se o Marco Civil da Internet, onde foram estabelecidos princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil. Logo em seu art. 2º, consta que “A disciplina do uso da internet no Brasil tem como fundamento o respeito à liberdade de expressão”. O art. 3º elenca os princípios que regem a disciplina do uso da Internet, sendo o primeiro deles “garantia da liberdade de expressão, comunicação e manifestação de pensamento, nos termos da Constituição Federa”. E, no art. 8º, condiciona o pleno exercício do direito de acesso à Internet à garantia da liberdade de expressão.
Os crimes contra a honra estão tipificados no Capítulo V, do Título I (Crimes Contra a Pessoa), da Parte Especial do Código Penal, desde 1940. Portanto, é evidente sua desatualização ao contexto atual, onde as relações sociais estão cada vez mais virtualizadas e o próprio conceito de honra parece ter se alterado, na medida em que atos que constituíam ofensas gravíssimas no passado, hoje são aceitas como ordinárias pela coletividade.
Este fenômeno, que ocorre nesta esfera com muita intensidade, espraia-se por todos os ramos do Direito Penal, dada a sua dinamicidade. Todavia, com certo esforço interpretativo, os dispositivos legais que sancionam penalmente essas condutas não só podem como devem ser adaptados ao ambiente cibernético. Trata-se de uma imposição dos tempos modernos, válida também para novas condutas lesivas a interesses individuais ou coletivos que passaram a reclamar a intervenção penal.
Hoje, com as redes sociais fazendo parte intrínseca da vida comunitária dos indivíduos, a falsa imputação de crime (calúnia), a imputação de fatos ofensivos à reputação (difamação) e a ofensa à dignidade ou ao decoro (injúria) sem dúvida foram banalizadas. A ofensividade das condutas parece ter se diluído. É mais difícil atingir concretamente os bens jurídicos tutelados pelas normas penais que tipificam essas condutas (honra objetiva e honra subjetiva).
Parte disso talvez se deva à sensação de impunidade, na medida em que as penas são bastantes brandas e ensejam o cabimento das medidas despenalizadoras da transação penal e da suspensão condicional do processo, raramente conduzindo a condenações criminais, o que, de fato, não está equivocado. Embora o Direito Penal ainda cumpra um papel importante na contenção dessas condutas com o seu simbolismo sancionatório, certo é que torna-se cada vez mais inconcebível a aplicação da pena para tais espécies delitivas. De outro lado, a ausência de investigação efetiva por parte do Estado impede a apuração de violações muitas vezes realmente graves à pessoa ofendida.
O reconhecimento dessas práticas delitivas implica uma correspondente responsabilidade civil, cuja estipulação de um valor indenizatório mínimo pode ser definido na própria sentença penal condenatória. A questão é que o produto do crime não pode ficar disponível ad aeternum nos meios eletrônicos, pois não basta a punição do seu autor, é necessária a extirpação imediata do delito, do contrário permanecerá produzindo seus efeitos maléficos à vítima.
O próprio Poder Judiciário torna-se, pois, responsável pela propagação desses crimes contra a honra no meio virtual quando não determina imediatamente a remoção das publicações ofensivas daquele ambiente, onde atingem um sem-número de pessoas, causando grande abalo contra a honra de indivíduos.
Caberia, inclusive, ao Delegado de Polícia, exercendo a atribuição de apreensão dos objetos que tiverem relação com o fato (art. 6º, I, do CPP), tomar providências para preservar e indisponibilizar publicações ofensivas, quando os próprios provedores de hospedagem (redes sociais, p. ex.) assim não o fizerem após provocação administrativa.
Os crimes contra a honra pela Internet confrontam dois direitos fundamentais do cidadão. De um lado, a liberdade de expressão, que é, por preceito constitucional (art. 5º, IX), independente de censura ou licença. De outro, a honra, que é inviolável (art. 5º, X). Consequentemente, por ambos possuírem assento na Lei Fundamental, caberá ao juiz, no caso concreto, realizar a devida ponderação de qual interesse se sobrepõe, o que, sem dúvida não é (ou não deveria ser) tarefa fácil.

sábado, 8 de abril de 2017

14 Propostas para solucionar a crise penitenciária no Brasil


Propostas anunciadas pelo poder público

1. Construção de presídios (estruturante)
Foi proposto: Temer anunciou R$ 200 milhões para novas cinco prisões federais (que já faziam parte do Orçamento) e, em dezembro de 2016, repassou R$ 800 milhões aos Estados, sem citar que se tratava de determinação do STF.
Já foi feito: Obras em finalização vão gerar 45 mil vagas.
O debate: O Brasil já tem mais vagas do que a demanda média global de presos, mas tem o dobro de detentos. "Fica evidente que não temos que aumentar as vagas, mas reduzir os presos", diz Valdirene Daufembach, ex-diretora de Políticas Penitenciárias. Leandro Piquet Carneiro, da USP, discorda: "Se a Justiça manda prender, a instalação precisa existir".

2. Forças Armadas (emergencial)
Foi proposto: Escalação de mil militares para fazer varreduras nos presídios e detectar celulares, drogas e armas; eles não terão contato com os detentos.
Já foi feito: A corporação nunca foi usada em prisões, mas já atuou em favelas dominadas pelo tráfico no Rio.
O debate: O fato de os militares serem treinados para a guerra gera críticas. "Se não têm treinamento para lidar com as ruas, têm muito menos para lidar com presídios", afirma Fábio Sá e Silva, pesquisador do Ipea e ex-coordenador do Depen (departamento penitenciário do Ministério da Justiça).

3. Grupo nacional de agentes penitenciários (emergencial)
Foi proposto: Criação de um grupo de intervenção, como a Força Nacional, de cem agentes penitenciários cedidos pelos Estados, que entrarão em unidades em crise para fazer triagem dos presos e separar líderes de facções.
O debate: Leandro Piquet Carneiro, da USP, afirma que é necessário pois "a capacidade de contenção de crises [em prisões] é assimétrica nos Estados". Outros especialistas relembram críticas à Força Nacional: "O custo é alto, a eficácia é duvidosa e cria animosidade com forças locais", diz Sá e Silva. "Melhor seria estruturar os serviços nos Estados."

RAIO-X DA CATEGORIA
60 mil é o total de agentes penitenciários no Brasil
10 detentos por servidor é o que isso representa; o ideal seria 5
120 mil é o deficit dos agentes no país
R$ 3.000 é salário médio bruto
Fonte: Febrasp (Federação Brasileira dos Servidores Penitenciários)

4. Bloqueadores de celular e escâneres (emergencial)
Foi proposto: Repasse aos Estados de R$ 150 mi para a compra de bloqueadores e de R$ 80 mi para escâneres corporais (ambos já estavam no Orçamento).
Já foi feito: 24 unidades prisionais, em dois Estados, têm bloqueadores, e há 78 escâneres em presídios do país.
O debate: O analista criminal Guaracy Mingardi diz que os escâneres são imprescindíveis, mas requerem protocolos. "Há muita corrupção local." Para Maria Laura Canineu, da Human Rights Watch, eles evitam revistas vexatórias. Já o uso de bloqueadores é menos consensual. "Não é necessário em todas as prisões, só onde há crime organizado", diz Piquet.

5. Censo penitenciário (estruturante)
Foi proposto: O CNJ propôs uma grande pesquisa a ser realizada pelo IBGE, a um custo de até R$ 18 milhões. Já o Plano de Segurança prevê o Sisdepen (Sistema de Informações do Departamento Penitenciário Nacional), um cadastro alimentado pelos Estados (que foi desenvolvido desde 2012 e lançado em 2016, ainda no governo Dilma).
Já foi feito: O último censo das prisões data de 2012, e os dados mais recentes do Depen são de 2014. O Sisdepen e o Sistema de Execução Penal Unificado (SEEU), do Judiciário, atendem à lei que determina transparência no sistema.
O debate: A necessidade de mais dados é unânime. "É preciso informação para planejar políticas públicas, hoje feitas na base de impressionismos e preconceitos", diz Sá e Silva.

6. Força-tarefa para rever presos provisórios (emergencial)
Foi proposto: O CNJ propôs a chamada Reunião Especial de Jurisdição em cada Estado para acelerar julgamentos, com a análise da situação de presos provisórios.
Já foi feito: Mutirões carcerários são realizados pelo CNJ desde 2008, tendo beneficiado mais de 80 mil detentos com progressão de pena e medidas cautelares. Cerca de 40 mil presos provisórios foram libertados nestes eventos.
O debate: A medida é considerada importante, mas paliativa. Para Maria Laura Canineu, da Human Rights Watch, é essencial "eliminar atrasos injustificados no sistema de Justiça". "O CNJ deve pressionar para o cumprimento de sua resolução que diz que juízes devem rever casos de presos provisórios a cada três meses", diz.

7. Profissionalização de presos (emergencial)
Foi proposto: Oferta de cursos para profissões como jardineiro, padeiro e encanador para 15 mil presos, segundo o Ministério do Trabalho, com investimento de R$ 30 milhões. O país tinha 622 mil detentos em 2014.
Já foi feito: Os cursos estão previstos na Lei de Execuções Penais, mas apenas 1,3% dos presos estão envolvidos.
O debate: Especialistas apontam que a superlotação é um entrave, porque faltam espaços físicos e organização. Para Sá e Silva, do Ipea, é preciso "conectar educação, trabalho e geração de renda a partir do perfil econômico da região".

Outras medidas apontadas por especialistas em segurança pública

1. Separação de presos (emergencial)
Dois tipos de separação estão previstos na Lei de Execuções Penais e em tratados de direito internacional: tanto entre presos provisórios e condenados quanto entre detentos que cometeram crimes graves e leves são comumente adotadas, seja pela superlotação ou ausência de instalações. Quanto à separação de acordo com a facção criminosa à qual o preso pertence, como acontece no Rio, há dubiedade. Se por um lado a prática evita as matanças que marcaram o início do ano, de outro, promove maior organização e controle das unidades pelos grupos.

2. Aumento no número de defensores públicos (estruturante)
É dever do Estado garantir ao preso assistência jurídica para a defesa dos direitos do condenado às progressões de regime, livramento condicional e indultos em feriados. A falta desta orientação e o deficit de defensores públicos, porém, retêm no sistema indivíduos que não deveriam estar ali. A Emenda Constitucional nº 80/2014 prevê que deve haver Defensorias Públicas Estaduais em todo o território nacional em um prazo de oito anos a partir de 2015 –hoje, apenas o Estado do Rio tem defensores em todas as jurisdições.

3. Audiências de custódia (estruturante)
Criadas em 2015, as audiências de custódia permitem a avaliação da legalidade, necessidade e adequação de prisões em flagrante por juízes no prazo de 48 horas. O acusado é apresentado e entrevistado em sessões nas quais são ouvidos também o Ministério Público e a Defensoria Pública ou o advogado do preso. Em média, 50% dos presos em flagrante são liberados, com ou sem medidas cautelares impostas, para responder ao processo em liberdade. Presentes apenas nas capitais do país, as audiências precisam ser interiorizadas pelas várias comarcas e jurisdições.

4. Melhora na gestão prisional (estruturante)
Especialistas apontam que reina o improviso na administração penitenciária. É necessário estruturar a gestão e avaliar o quadro e o deficit de servidores, criando protocolos e dando condições para que eles contribuam para a reintegração do preso. "O agente penitenciário é parte de uma equipe multidisciplinar, que envolve gestores, psicólogos, assistentes sociais e médicos, sem a qual não se mantém uma rotina adequada nos presídios", diz Valdirene Daufembach, ex-diretora de Políticas Penitenciárias. Para o analista criminal Guaracy Mingardi, "o Estado precisa regrar a vida nas cadeias para diminuir o poder das facções".

5. Discussão da Lei de Drogas (estruturante)
A proporção de presos por tráfico de drogas dobrou de 2005 a 2014, o que fez com que o crime se tornasse aprincipal razão do encarceramentono país. Com isso, prende-se mais por tráfico do que por crimes contra a vida ou por crimes sexuais, considerados muito mais graves. "Nossas polícias não têm tempo nem recurso para investigar os crimes mais relevantes porque está totalmente voltada para crimes de rua", diz Daufembach. Para mudar essa realidade, parte dos especialistas pregam a revisão da Lei de Drogas de 2006, que retirou a pena de privação de liberdade dos usuários de drogas, mas não criou critérios claros e objetivos para diferenciar uso e tráfico. Muitos defendem a descriminalização do porte para consumo.

6. Mudança no modelo de Justiça e penas (estruturante)
A resolução de diversos tipos de conflito por meio do instituto da prisão é criticada por parte dos especialistas, que lembram as recentes medidas de desencarceramento adotadas nos EUA como modelo. "Os governos precisam criar mudanças na legislação, adoção de penas alternativas e uso de tornozeleiras eletrônicas ", diz Fábio Sá e Silva, do Ipea. Para Daufembach, os brasileiros têm que se envolver no debate sobre outras formas de Justiça, segundo ela, mais efetivas. "É preciso que pensemos na Justiça restaurativa, em que a vítima participa do processo e há possibilidade de ressarcimento de danos." Para ela, o modelo atual está "inflando a máquina policial e judicial sem trazer as sensações de segurança e justiça esperadas".

7. Ressocialização (estruturante)
Segundo a Lei de Execuções Penais, além de ter caráter punitivo, a pena deve "reeducar" o preso e criar condições para a "harmônica integração social do condenado", o que está longe de ocorrer no sistema hoje, em que a taxa de homicídios é seis vezes maior que o já alto índice de assassinatos nas ruas do país. Especialistas apontam que tratar a questão prisional como de segurança pública prejudica o setor, já que os serviços penais não deveriam ter foco na repressão, mas na reintegração do preso à sociedade para a qual, invariavelmente, ele retorna.








As cadeias que, sem armas, derrubam as reincidência criminal no Brasil

 Imagine uma cadeia sem armas, agentes de segurança, violência ou repressão. Um lugar onde os presos, que não são chamados dessa forma, cuidam das chaves. Imagine um prédio ensolarado, pintado de azul celeste, com uma grande horta ao lado de fora e o vento, que traz consigo o cheiro do alecrim. Imagine todas as pessoas juntas à mesa farta, com pratos, talheres, dignidade. Esse lugar sem registro de rebeliões ou mortes, que mais parece música de John Lennon, já existe no Brasil. São as Apacs (Associações de Proteção e Assistência ao Condenado), ou, como seus criadores preferem ler, Amando ao Próximo Amarás a Cristo.

As Apacs, em sua maioria cadeias administradas pelas Pastorais Carcerárias, braços assistenciais da Igreja Católica, ou por outros grupos religiosos ou apenas voluntários, podem soar uma utopia no país que iniciou o ano com matanças nos presídios do Norte e Nordeste, mas são consideradas pela ONU (Organização das Nações Unidas) como o único modelo prisional que deu certo no Brasil, o quarto país com maior população carcerária do mundo. São 50 associações pelo país com resultados semelhantes: custam R$ 800 por preso (contam com voluntários e funcionários), três vezes menos que a média nacional de 2.400 reais, e o índice de recuperação é de 95% contra 25% das cadeias padrões.

Quatro critérios selecionam os prisioneiros. Eles precisam ser condenados, manifestar por escrito que aceitam as normas apaquianas, terem família ou cometido o crime na comarca da associação - para facilitar a assistência jurídica e o envolvimento familiar. Além do critério de antiguidade. São priorizados condenados com penas mais longas, indiferentemente do crime que cometeram, em unidades que também contrastam com o superlotado resto do sistema: as Apacs têm em média 200 detentos. A única Apac que se diferencia é a de Santa Luzia (MG). Localizada na região metropolitana de Belo Horizonte há uma exigência a mais motivada pela longa fila de espera: um ano de bom comportamento.
  
 A primeira Apac foi criada há 45 anos em São José dos Campos (SP), pelo advogado e jornalista Mario Otoboni e um grupo de voluntários cristãos. Desde então, as unidades se espalharam por sete Estados brasileiros. Em março, uma nova associação abre em Florianópolis, a centésima do mundo, e sua idealizadora e futura presidente, Leila Pivatto, 67 anos, mostra seu entusiasmo: “Quando condenados, e vale lembrar que 40% dos 600 mil encarcerados no Brasil não são, os presos deveriam perder o direito de ir e vir. Apenas. Mas eles perdem tudo. O contato com as famílias, os direitos à saúde, educação, trabalho e assistência jurídica. Nós entendemos que para matar o criminoso e salvar o homem é preciso cidadania".

 Leila, voluntária há dez anos da Pastoral Carcerária que trabalha 12 horas por dia sem ganhar nenhum centavo, e seus colegas pelo país não são os únicos a apostar no modelo. A proposta ganhou a atenção da presidente do Supremo Tribunal Federal, Cármen Lúcia: “As Apacs são a minha aposta. Elas têm dado certo. Basta dizer que a reincidência é de 5%, enquanto nos presídios comuns é de até 75%”, disse a ministra em entrevista ao Programa Roda Viva, da TV Cultura, em outubro do ano passado.
Oposta às cadeias comuns no cerne, talvez a diferença maior das Apacs seja sua concepção de defesa da justiça restaurativa, não da punitiva. Elas não podem ser criadas pelos governos, só pela organização e boa vontade da sociedade civil, esse é um dos principais obstáculos para expansão do modelo em larga escala.

"Não há solução imediata para as prisões. Todo processo será lento e exigirá consciência da população. Eu acredito que as Apacs sozinhas não irão resolver. É preciso estimular o desencarceramento. Há gente presa por bobagens. A minoria da massa prisional é perigosa, os outros poderia cumprir penas alternativas. E, obviamente, é preciso gerar oportunidade. Antes construirmos escolas do que prisões", disse Leila.

 No caso da unidade de Florianópolis foram seis anos da primeira assembleia até a construção do prédio. O primeiro passo foi a audiência pública na comarca, em seguida a criação jurídica, que não visa nenhum lucro, e visitas à Apac de Itaúna, em Minas Gerais, que existe há 17 anos e é celebrada pela sua excelência, lá fugas são raras: a última demorou dez anos para acontecer.

 A primeira Apac de Santa Catarina ficará no Complexo da Agronômica, em Florianópolis, onde cinco unidades já detêm quase 1,6 mil pessoas. A Apac será a sexta. A única semelhança com os vizinhos de muro é o terreno. A casa ampla e solar não foi criada para punir. Ao invés de agentes do Deap (Departamento de Administração Prisional), a organização será responsabilidade dos voluntários, não só da Igreja Católica, mas de diversas áreas. São advogados, médicos, dentistas, psicólogos, professores de música e yoga, confeiteiros, gente que acredita que para resolver a violência das ruas é preciso mudar a realidade do cárcere.
"Aqui os presos usarão suas roupas, serão chamados pelos seus nomes ou como recuperandos. E no lugar da solitária poderão resgatar seu equilíbrio na capela, se quiserem”, diz Leila, enquanto trabalha na finalização do edifício.

 A rotina será rígida. São os presos que serão os responsáveis pela segurança e pela limpeza. Às seis da manhã eles levantam, arrumam suas camas (sim, eles têm camas), fazem as orações, tomam café e iniciam as tarefas do dia, que só termina às 22h. É requisito básico que todos trabalhem e estudem. Ao longo desse período também participam de palestras de valorização humana, oficinas, atos religiosos, lazer e descanso.

 "As pessoas sempre nos perguntam se é o voluntariado que reduz o preço das Apacs. Digo que sim. Também não há gastos com agentes penitenciários e terceirizações de serviços. Utilizamos a mão de obra dos recuperandos. Mas não podemos esquecer uma questão central. Não há corrupção. O valor pago pelos presos comuns no Brasil é muito questionável. Se eles não recebem assistência jurídica, médica, alimentação adequada para onde vai tanto dinheiro?", questiona Valdecir Antônio Ferreira, presidente da FEBAC (Federação das Apacs do Brasil).

As leis da Apac

 Os mandamentos apaquianos são maiores que os de Moisés. Doze leis procuram reverter o exemplo fracassado das penitenciárias comuns fazendo justamente o contrário – ou na provocação de Leila, “cumprindo a risca a Lei de Execuções Penais”.

 As leis buscam espiritualidade – independentemente de crença, por isso a cor azul. Fortalecem os elos familiares. São permitidas ligações uma vez por dia, cartas sempre que desejado e as famílias são convidadas para todas as comemorações. Outro estímulo é a empatia. Na crença de que se aprenderem sobre a ajuda mútua é mais difícil prejudicar alguém. O trabalho é importante, não fundamental. No regime fechado é incentivada a recuperação emocional do indivíduo, no semiaberto a profissionalização, e no aberto, a inserção social.

 Segundo pesquisas da FEBAC, 98% dos recuperandos, cerca de 3.500 pessoas, vieram de famílias completamente desestruturadas. A maioria vê o pai e a mãe como figuras deturpadas. “Na raiz do crime vamos encontrar sempre a experiência da rejeição”, defende Valdecir. “Essa é uma visão comum para quem trabalha com o sistema prisional. Nós costumamos dizer que os presos que recebem sacolinhas com comidas e produtos de higiene dos seus familiares se recuperam. Na prática, são os que têm cuidado e amor. Tem para quem voltar”, complementa Leila.
Valdecir dedicou 33 anos da sua vida às Apacs. Conta que já recebeu presos de alta periculosidade, integrantes de poderosas facções e os resultados sempre foram positivos. “Fizemos uma pesquisa com mil presos e constatamos que 85% querem mudar de vida. Então, acreditamos que as Apacs poderiam ser reproduzidas para abraçar toda essa massa sedenta por oportunidades. Mas não se cria Apac por decreto. Ela exige que a sociedade civil organizada tome consciência do problema e procura solucioná-lo, além de governantes parceiros que apoiem a ideia de prisões dignas. O que seria preciso? Mudar a nossa cultura”.

 Newton Antonio de Almeida, 40 anos, sabe bem de qual cultura fala Valdecir. Preso por tráfico, ele ficou três anos e oito meses no Presídio Masculino de Florianópolis e há dez mudou de vida, quando foi contratado como funcionário da Pastoral Carcerária. 

 “Poucos tiveram minha chance. Não é novidade que as cadeias não ressocializam. Na verdade, tiram o pouco que tu tem. Mas quem se opõe? Bandido bom é pobre morto”, afirma. Para ele, a população não quer Justiça, quer vingança. “Que o preso sofra, passe frio, fome, apanhe. E não percebe que toda essa dor, essa violência irá para ruas. Se essa lógica funcionasse seríamos um país muito pacífico. Você não acha?”

O crime no Brasil

O crime no Brasil compensa, pois é lucrativo e impulsionado pela impunidade.

Gary Stanley Becker

Em face da recorrente necessidade de se refletir sobre o fenômeno criminológico, a análise de modelos propostos para descrever o crime mostra-se imprescindível. Nos limites deste espaço de debate acerca das Ciências Criminais, farei referência, de forma sintética, à Teoria Econômica do Crime.
Gary Stanley Becker